Por Diego de Lima Gualda

Transformação digital dos negócios é um chavão surrado, quase anacrônico. Por diversas razões, empresas vêm adotando com maior ou menor sucesso, programas de transformação digital nos últimos anos. Mas a crise causada pelo novo coronavírus pegou quase todos de surpresa, e, em muitos casos, evidenciou a incompletude desses projetos ou as suas fragilidades. A crise trouxe a lição de que a transformação digital dos negócios ainda em curso precisa ser acelerada, e precisa ser pra valer.

A dinâmica de riscos na conjuntura atual, todos globais e sistêmicos, faz com que os negócios precisem estar estruturados para mudanças rápidas e críticas, inclusive no core business. Eles precisam se transformar mais rápido, de maneira mais inteligente e plástica, precisam estar prontos para realidades econômico-sociais novas e inesperadas. Além disso, não podem descuidar dos riscos e responsabilidade que acarretam essas transformações.

Diante disso, do ponto de vista jurídico, alguns elementos são chave para essa estratégia, devendo ser considerados e ponderados junto da análise do negócio. Mesmo num ambiente de negócios complexo como o brasileiro, há oportunidades devem ser exploradas.

Em primeiro lugar tratamos do tema da proteção de dados. É sintomático que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) tenha sido uma das primeiras vítimas escolhidas em tempos de pandemia. É claro que o custo de adequação é relevante, e, exigir esforços adicionais das empresas que neste momento lutam pela sobrevivência, pode soar descabido. Mas isso também demonstra que muitos líderes de negócio ainda não compreenderam o quão estratégico a discussão de proteção de dados é e será daqui para frente. Essa discussão é sobre direitos fundamentais, é sobre responsabilidades adicionais que as empresas devem assumir, mas é também uma regulamentação que traz um instrumental mais complexo, mais bem desenvolvido e mais sofisticado para lidar com as iniciativas de analytics e big data, que são o pão com manteiga de qualquer estratégia digital. Na verdade, qualquer modelo de negócio que pretenda obter insights a partir dos comportamentos, hábitos, preferências e dados de seus clientes vai necessitar desse instrumental. A LGPD é ainda sobre a capacidade dos negócios de protegerem ativos digitais de valor agregado altíssimo, o que inclui dados pessoais de clientes. Muitos líderes ainda precisam compreender que quanto mais sofisticada e ambiciosa for sua estratégia digital, especialmente se for centrada em dados, igualmente sofisticada deve a abordagem com relação à segurança e à proteção de dados. A boa notícia é que a LGPD traz sim possibilidades para a inovação e mais segurança jurídica, principalmente quando nos leva para uma sistemática de tratamento de dados pessoais menos dependente do consentimento, mais focada em accountability, transparência e meios de gestão pelos titulares de seus dados pessoais. A instrumentalização desses elementos pode ser um diferencial competitivo na sua estratégia. As empresas precisam rapidamente se convencer de que esse é um assunto prioritário e que deve ser resolvido do ponto de vista de negócio, não apenas para cumprir um requisito de compliance.

Em segundo lugar, podemos tratar sobre os novos modelos de trabalho. As transformações econômicas de um modelo de capitalismo industrial para outro centrado em serviços e tecnologia trouxe repercussões fundamentais para as relações de trabalho. Os modelos de trabalho da economia de compartilhamento vieram para ficar. Se por um lado, especialmente para trabalhadores altamente qualificados, os novos modelos de trabalho significam um espaço maior de liberdade e independência, por outro, é inegável que teremos que atravessar a discussão da precarização de alguns segmentos. Os líderes de negócio precisam estar atentos a esses dois movimentos e conjuntos da questão. No que diz respeito à precarização, é ilusório imaginar que a sociedade e o Estado irão tolerar de maneira permanente a exposição de pessoas a um modelo de trabalho de altíssimo risco (em alguns casos, riscos de vida) em razão da fragilidade econômica em que se encontram. Isso não significa dizer que essas novas formas de trabalho irão se reduzir à relação de emprego. Conquanto a questão ainda não esteja resolvida nem do ponto de vista regulatório nem em nosso judiciário, há reconhecimentos e pontos que nos parecem de não retorno. Os novos trabalhadores autônomos que utilizam de plataformas que intermedeiam serviços não são empregados, não estão subordinados ao controle da plataforma no que diz respeito à condução dos serviços, ao tempo, à jornada, à pessoalidade. Ainda que haja um condicionamento de certos aspectos do serviço mediado pela plataforma, é nítida a distinção entre estes autônomos que trabalham oferecendo serviços por meio de plataformas e o modelo da relação de emprego tradicional. A justiça do trabalho tem dado indicativos de reconhecer essa distinção, embora a questão da precarização é um elemento fundamental que ainda preocupa. O fato é que há estratégias e modelos de negócio que podem trazer maior segurança jurídica para as empresas explorarem estas alternativas de negócio tão importante para ganhos de escala, para a agilidade, a focalização em consumidores ou mesmo maior eficiência com a cadeia de fornecedores.

Em terceiro lugar, focamos nos aspectos relacionados à responsabilidade. Vários desses novos modelos se estruturam como marketplaces ou plataformas de dois (ou múltiplos) lados. A estratégia tão aplicada por conhecidos gigantes da tecnologia é criar um ecossistema de usuários independentes em torno da plataforma e obter ganhos em razão da escala dos serviços. A plataforma passa a desenvolver soluções que fomentam e facilitam as relações dentro desse ecossistema, mas ela não necessariamente possui ingerência nem controla diretamente os termos e comportamentos dos usuários desse ecossistema. Na estruturação desses modelos é frequente a discussão sobre a responsabilidade dessas plataformas pelos produtos e serviços transacionados, especialmente em razão da responsabilidade da cadeia de fornecedores com base no Código de Defesa do Consumidor. O debate na verdade não é novo, e os termos do Marco Civil e decisões dos tribunais superiores apontam para uma modulação na responsabilidade dessas plataformas que nos parece importante. A lógica é de que elas devem assumir o risco pelos serviços que efetivamente se dispõem a prestar, conforme o grau de interferência e o papel que exercem dentro do ecossistema. Essa questão envolve desde plataformas de comunicação, passando pelo e-commerce, locação de bens ou imóveis, e chegando aos modelos de aplicativos de mobilidade. Assumindo que a questão ainda não é totalmente pacífica, é essencial que os negócios se atentem na estruturação de contratos, atuação no ecossistema e práticas de negócio para mitigar os riscos envolvidos. As partes que se relacionam dentro do ecossistema precisam estar vinculadas adequadamente, os contratos precisam ser claros e escritos em linguagem acessível, políticas e práticas precisam ser comunicadas de maneira ostensiva, e os negócios devem se preparar para endereçar reclamações e conflitos dentro do marketplace.

Em quarto lugar, falamos da regulação no âmbito financeiro. O contexto brasileiro de uma população pouco bancarizada e de um mercado com competição ainda limitada traz oportunidades enormes no setor financeiro. A própria dificuldade do governo federal em organizar os pagamentos do benefício emergencial no contexto da pandemia e a adoção de aplicativos como solução mais eficiente é evidência de que há um espaço ainda a ser conquistado nesse setor. E não é que nada tenha acontecido no Brasil nos últimos anos, muito ao contrário. Na lista das mais bem-sucedidas startups no Brasil quase todas incluem em alguma medida serviços financeiros. Não sem razão, a espinha dorsal de qualquer modelo de negócio de marketplace é o ferramental que permite a realização de transações. O Brasil avançou bastante na regulamentação de uma série de serviços novos prestados por fintechs e o regulador mais importante nesse processo, o BACEN, parece convencido de que a expansão de serviços financeiros através de soluções tecnológicas é um propulsor fundamental de competição, ampliação de serviços e extensão deles para uma parte enorme da população brasileira. Há oportunidades tanto para que as empresas estruturem novos modelos de negócio no setor financeiro, com transações ou empréstimos, quanto de parcerias com fintechs estabelecidas capazes de encurtar a distância para a transformação do seu negócio de analógico para digital. Em qualquer dos casos é fundamental a atenção para os aspectos regulatórios, em especial a necessidade de se preparar para pedidos de autorização junto ao regulador e atenção para um escrutínio grande nas práticas adotadas. Se a opção for por parceiros, novamente é necessário atenção para as questões contratuais, as responsabilidades assumidas por cada parte, os aspectos relacionados à regulamentação e outros itens relevantes dessa relação.

Em quinto lugar, os aspectos tributários. Na questão tributária é fundamental que haja uma estruturação contratual, além dos aspectos financeiro e contábil, para que os novos negócios possam se estabelecer de maneira eficiente e minimizando riscos. Como sabido, o sistema tributário brasileiro é complexo e ineficiente, além das autoridades fiscais exercerem com frequência um poder regulamentar que ultrapassa as condições objetivas da lei, fator de insegurança jurídica contínuo. Não ajuda o conflito federativo estabelecido em torno dos impostos incidentes sobre mercadorias e serviços, em especial o ICMS e o ISS. A mudança de modelo econômico de industrial para de serviços e tecnologia tem um efeito profundo sobre a dinâmica de receitas de Estados e alguns Municípios (os maiores e principais do país). Basicamente o Estado tem perdido receita e alguns Municípios têm visto sua base aumentar. Desde o começo dos anos 2000 esse conflito federativo tem afetado contribuintes por meio de tentativas dos Estados de ampliarem sua base de tributação através de interpretações das autoridades fiscais. A questão aconteceu com os serviços de valor agregado (principalmente conexão à internet), com a publicidade, com softwares, e não há indicativo de resolução sem a unificação desses tributos numa reforma tributária. Por razões óbvias, isso termina por afetar os modelos de negócio digitais em vários aspectos, incluindo a insegurança sobre o equacionamento correto dos custos tributários. Nesse caso, não somente uma estruturação do modelo, incluindo seus aspectos práticos, contratuais e financeiro-contábeis, quanto uma avaliação de risco adequada e a preparação para eventuais litígios são fundamentais para o sucesso do negócio. Por mais que os aspectos tributários sejam desafiadores, há modelos de negócio no Brasil de sucesso que foram capazes de perseguir uma estratégia eficiente de gestão do risco.

Finalmente, tratamos das oportunidades no contexto de fusões e aquisições. Aquisições e investimentos são estratégias comuns de transformação digital. Pode-se capturar talentos, modelos de negócio ou ativos com enorme potencial, mas há vários cuidados importantes. O primeiro é estratégico: com muita frequência a empresa adquirida termina fracassando por ser absorvida dentro das práticas de negócio, do modelo e dos limites pré-determinados com os quais precisa lidar no contexto da empresa adquirente. A estratégia de aquisição e integração, os aspectos de cultura corporativa e os processos de negócio não são problema menores que podem ser resolvidos somente depois da aquisição. A estrutura do processo de aquisição ou investimentos, as opções operacionais e uma análise completa da situação legal da empresa a ser adquirida são questões chave para o sucesso da empreitada.

O ambiente de negócio brasileiro não é fácil e realizar transformações em contextos críticos como o atual aumenta o desafio. Mas em todos os temas citados, que podem soar como barreiras, há estratégias de mitigação de risco e potencialização de oportunidades que podem ajudar a transformar negócios, de maneira eficiente, inovadora e relativamente segura. O tempo crítico não é motivo para desistir ou abandonar a transformação digital do negócio, ao contrário, é a oportunidade de fazer uma estratégia de transformação abrangente e completa que se converta num diferencial de negócio não somente agora, mas quando a tempestade passar.


*Diego Gualda é sócio da área de Tecnologia e Proteção de Dados do Machado Meyer Advogados


(O Estado de S. Paulo online - 26.04.2020)