Por Daniella Zagari e Diana Piatti De Barros Lobo


Em 18 de abril de 2018, o Ministério da Fazenda publicou a Portaria nº. 153 que promoveu alterações no Regimento Interno do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), a segunda instância de julgamento na esfera administrativa fiscal federal.

As alterações tiveram como foco sobretudo questões administrativas internas, além de modificações na regra de impedimento de conselheiros e nomeação das vagas para a representação dos contribuintes.

A Portaria já indica um cenário positivo para mudanças, mas foi tímida em diversas questões que poderia ter solucionado: pautas extensas e impossíveis de serem cumpridas; falta de padronização dos órgãos de julgamento para a retirada de pauta do processo (seja a pedido do contribuinte, seja de ofício, pelo Presidente da Turma); além de outros temas mais polêmicos como os julgamentos por órgãos sem a composição paritária e o voto de qualidade (na prática, majoritariamente em favor do Fisco).

A Portaria nº 153/18 também não abordou questão extremamente pertinente no cenário atual, que se refere à possibilidade de sobrestamento de processos administrativos quando a matéria está em discussão nos Tribunais Superiores em processo que será julgado sob a sistemática do artigo 1.036 do CPC/15 (antigos art. 543-B e 543-C do CPC/73), os recursos repetitivos.

No antigo Regimento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Portaria MF nº 256/2009), existiu por certo período, disposição que determinava o sobrestamento do processo administrativo nos casos em que o próprio STF sobrestava o julgamento de recursos extraordinários. Possivelmente em razão do grande estoque de processos represados, a disposição foi revogada já no Regimento anterior e não foi reproduzida no novo Regimento (tampouco foi objeto das alterações introduzidas pela Portaria nº 153, de abril de 2018).

Assim, hoje, não há previsão de suspensão do processo no CARF, quer seja no âmbito do Regimento do CARF, quer seja no Decreto nº 70.235/72, que regulamenta o processo administrativo.

Ocorre que essa ausência de norma específica no Regimento sobre o sobrestamento do processo administrativo termina provocando situações em que fica evidente o conflito entre matérias decididas pelos Tribunais Judiciais Superiores e a solução dada pelo CARF.

É, por exemplo, o cenário para os casos administrativos que versam sobre a não inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e COFINS.

Como amplamente divulgado na mídia, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 574.706, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em processo com repercussão geral reconhecida, que o ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da COFINS.

Não obstante a referida decisão não tenha ainda transitado em julgado (aguarda-se o julgamento dos embargos de declaração opostos pela União, inclusive com pedido de modulação de efeitos), pode-se concluir que, após longos debates e uma tramitação que durou 11 anos só no STF, a Corte Constitucional deu sua palavra final sobre a matéria, reconhecendo o direito do contribuinte. E o fez reiterando um posicionamento manifestado no RE nº 240.785 (sem repercussão geral reconhecida), o que reforça a uniformidade do posicionamento da Corte pela reiteração do resultado mesmo em composições distintas do órgão.

No âmbito judicial, em atenção à disposição do art. 1.035, parágrafo 11, do Código de Processo Civil, os Tribunais Regionais e os órgãos de julgamento de primeira instância têm aplicado a tese fixada pelo STF e seguido a orientação. E as razões de decidir suscitadas pelo STF no leading case têm também servido de fundamento para os julgamentos de matéria correlata referente a outros tributos (vide decisões do STJ sobre não inclusão do ICMS na base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre Receita Bruta).

A Primeira Turma do STF, inclusive, já tem aplicado a multa prevista no art. 1.021, parágrafo quarto do Código de Processo Civil para os agravos regimentais interpostos pela Fazenda Nacional, em uma tentativa considerada protelatória de adiar a conclusão daqueles processos até o julgamento dos embargos de declaração do RE nº. 574.706.

No CARF, entretanto, os casos mais recentemente julgados são – surpreendentemente – em desfavor do contribuinte e em sentido contrário à decisão proferida pelo STF[1]. Honrosas exceções para os julgamentos de uma das Turmas Extraordinárias da Terceira Seção[2] e para um julgamento da Primeira Turma da Quarta Câmara da Terceira Seção, quando se decidiu pela aplicação imediata da decisão do STF e não inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS.

Nos julgamentos em desfavor do contribuinte, foi citada a jurisprudência do STJ do REsp nº 1.144.469 – já superada pelo própria Corte de Justiça – que entendia até a apreciação pelo STF pela inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS.

Será que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais desconhece as decisões do Supremo Tribunal Federal e todas as demais no mesmo sentido do Judiciário? Não, em absoluto. A grande maioria dos acórdãos do CARF, inclusive, faz referência ao julgado do STF, mas deixa de aplicá-lo por entender que a disposição regimental (art. 62, parágrafo 2 da Portaria MF nº 343, de 9 de junho de 2015), que impõe a reprodução de decisões judiciais nos julgamentos administrativos, só compreende os casos de mérito transitados em julgado (o que não se aplica para o RE nº 574.706, ainda em curso).

Essa restrição regimental para a aplicação imediata da decisão do STF parece pretender preservar o interesse arrecadatório da União em caso de uma potencial (e, na hipótese concreta, pouco provável), mudança na jurisprudência. Enquanto o processo judicial não está definitivamente encerrado, existe, ao menos em teoria, uma possibilidade de revisão ou de restrição do entendimento para determinado período (por exemplo, pelo reconhecimento de uma modulação dos efeitos). E um julgamento precipitado em favor do contribuinte impede que a União prossiga, posteriormente, com a cobrança, já que as decisões que cancelam autos de infração e homologam a compensação, após o regular transcurso do processo administrativo, são definitivas (a União não pode tentar rever tais decisões em juízo). Por essa razão é que a norma dispõe que apenas as decisões transitadas em julgado devem ser replicadas nos julgamentos administrativos.

Entretanto, essa tentativa de preservar o interesse arrecadatório da União termina atentando quanto a um interesse público maior, de manter a coerência e uniformidade na aplicação das normas, seja por Tribunais administrativos ou judiciais.

Sim, porque esses processos administrativos sobre a não inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS, que estão sendo decididos pelas Turmas Julgadoras do CARF em sentido desfavorável ao contribuinte, certamente desaguarão em muito pouco tempo no Judiciário, em execuções fiscais com reduzidas chances de êxito.

E, se para o contribuinte, só há desvantagens nessa situação (da continuidade da discussão na esfera judicial decorre a obrigação de garantir o débito, arcar previamente com as custas judiciais e isso sem falar dos impactos das medidas pré-executórias, introduzidas recentemente pelos contestáveis arts. 20-B a 20-D da Lei nº 10.522/2002), para a União, até mesmo do ponto de vista financeiro, o balanço não é necessariamente positivo.

Esses processos se juntarão a tantos outros que formam o estoque de ações sob a tutela do Judiciário (números do Conselho Nacional de Justiça de 2017[3] apontam que as execuções fiscais representam 75% de todas as execuções do Poder Judiciário), contribuindo para reduzir o ritmo e a eficácia de uma Justiça já bastante desacreditada. E caso se concretize o provável insucesso da União (afinal, o STF por duas vezes já afirmou que o ICMS não está incluído na base de cálculo do PIS e da COFINS e as situações de modulações de efeito em matéria tributária não são frequentes), são os cofres públicos que suportarão os custos com os honorários de sucumbência e custas. Isso sem contar o desvio de foco quando se permite que Procuradores da Fazenda Nacional que poderiam estar perseguindo créditos de maior liquidez tenham que atuar para defender uma tese já decidida.

Nesse passo, cabe lembrar que a Procuradoria da Fazenda Nacional só fica autorizada a não contestar, não interpor recurso ou desistir dos já interpostos nas hipóteses bem específicas do art. 19 da Lei nº 10.522/2002, entre as quais o trânsito em julgado também dos processos decididos no rito dos repetitivos, o que significa dizer que, encerrada a esfera administrativa, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional seguirá com a cobrança judicial.

Nesse cenário, enquanto se aguarda o trânsito em julgado da decisão do STF, a solução que prestigia o interesse público primário, de garantir uma eventual futura arrecadação e o interesse público maior de se manter a integridade e coerência da jurisprudência (preceito normativo do art. 926 do Código de Processo Civil) é justamente o sobrestamento do processo administrativo. Nesses casos excepcionais, a suspensão deve ser admitida inclusive como medida de cautela e como maneira de preservar tanto o interesse do administrado, quanto da Administração.

Ainda, essa medida  está em linha com as disposições atuais do Código de Processo Civil. O artigo 313 do Código de Processo Civil dispõe pela suspensão do processo quando a sentença de mérito depender do julgamento de outra causa. É bem verdade que no processo administrativo não há que se falar em sentença propriamente dita, e sim de decisão ou acórdão. Mas a par dessa diferença linguística, superável em vista do próprio objetivo da norma, a previsão do artigo 313 do CPC é integralmente aplicável para casos como o exposto.

Inclusive, foi esse dispositivo que foi invocado recentemente pela Câmara Superior de Recursos Fiscais, órgão máximo do Tribunal Administrativo[4], quando da suspensão de processos administrativos que analisavam a natureza de subvenção para investimento de certos benefícios estaduais e dependiam de uma confirmação do cumprimento dos requisitos impostos no Convênio ICMS nº 190/2017.

No mesmo sentido a disposição do art. 1.035, parágrafo 5º, do CPC, que determina a suspensão do processamento de todos os casos pendentes, quando reconhecida a repercussão geral. Esse dispositivo denota a intenção do legislador, retratada em tantos outros dispositivos do Código de Processo Civil, de valorização dos precedentes e de uniformização da jurisprudência.

As disposições do Código de Processo Civil, conforme artigo 15, são de aplicação supletiva e subsidiária na ausência de norma que regule o processo administrativo. Isso significa dizer que, mesmo na carência de norma específica do Regimento do processo administrativo, a aplicação das normas do Código de Processo Civil, já seria suficiente para justificar o sobrestamento do processo administrativo[5].

Mas para aqueles que defendem a necessidade de norma regulamentar expressa, a Portaria nº 153, de abril de 2018, seria uma boa oportunidade (infelizmente não aproveitada) de restaurar a antiga regra de sobrestamento, dando uma melhor solução ao problema. E se a grande questão era não permitir que retornasse à situação de um enorme estoque de processos não julgados, então que se restringisse as hipóteses de sobrestamento para aquelas situações em que já existe uma decisão de mérito.

Assim, se o CARF, redobrando-se em cautelas, entende que a reprodução automática da decisão do STF só pode ser feita quando do trânsito em julgado da decisão do RE nº 574.706 (e definidas questões como a eventual modulação de efeitos), ao menos o interesse público maior da Administração, de manter a coerência e uniformidade da jurisprudência, e garantir o bom funcionamento da Justiça, estaria preservado. E prejuízo nenhum há para a União, já que a suspensão do processo administrativo não implica interrupção na incidência de juros, e quando da eventual retomada,  a cobrança é atualizada.

Afinal, o CARF tem uma missão muito mais nobre do que garantir a mera arrecadação para os cofres públicos: é o órgão administrativo máximo para preservar, proteger e garantir a justiça fiscal e a correta interpretação das normas tributárias. Nesse passo, uma alteração no Regimento para introduzir norma que disciplinasse essa questão teria sido muito bem-vinda.

1. Acórdão n. 3001-00.113, de 24 de janeiro de 2018, da Primeira Turma Extraordinária da Terceira Seção e acórdão n. 3401-004.378, de 26 de fevereiro de 2017, da Primeira Turma Ordinária da Quarta Câmara da Terceira Seção.

2. A exemplo do acórdão n. 3302-004.909, da Segunda Turma Ordinária da Terceira Câmara da Terceira Seção, de 29 de janeiro de 2018; acórdão 3402-004.699, de 24 de outubro de 2017, da Segunda Turma Ordinária da Quarta Câmara da Terceira Seção; acórdão 3201-003.383, de 01 de fevereiro de 2018, da Primeira Turma Ordinária da Segunda Câmara da Terceira Seção; entre outros.

3. Capturado no http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/12/b60a659e5d5cb79337945c1dd137496c.pdf em 23 de abril de 2018.

4. Resolução nº 9101-000.039,  nº 9101-000.042 e 9101-000.043.

5. A necessidade de sobrestamento dos processos administrativos que versam sobre essa matéria foi defendida, inclusive, por Conselheiros do CARF, conforme artigo publicado no JOTA

JOTA-BR
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-do-machado-meyer/as-alteracoes-no-regimento-interno-do-carf-15052018

(Notícia na íntegra)