Entre as diversas iniciativas surgidas com o cenário pandêmico do Coronavírus - cuja exata dimensão ainda não é conhecida, mas que tem boas chances de gerar um quadro econômico recessivo - há notícia de uma proposta de aplicação de medidas transitórias à Lei nº 11.101/2005 ("LRF") - que regula falências e recuperações judiciais e extrajudiciais - enquanto perdurar o estado de calamidade pública causado pela covid-19, visando a auxiliar empresas na reestruturação de seus negócios, reduzindo os impactos negativos da crise.

A iniciativa é do deputado Hugo Leal, relator do Projeto de Lei nº 6.229/2005, que tem por objeto justamente alterar a LRF.

Dentre as medidas propostas, merece destaque a suspensão automática, por 60 dias a contar da entrada em vigor da Lei, das ações judiciais de natureza executiva que envolvam discussão ou cumprimento de obrigações vencidas após 20/3/2020, bem como de ações revisionais de contrato, sendo vedados, nesse período: (i) a excussão judicial ou extrajudicial das garantias reais, fiduciárias, fidejussórias e de coobrigações; (ii) a decretação de falência; (iii) o despejo por falta de pagamento ou outro elemento econômico do contrato; (iv) a resolução unilateral de contratos bilaterais; e (v) a cobrança de multas de qualquer natureza incidentes ao longo do período de suspensão.

Durante esse período de suspensão, o devedor e seus credores deverão buscar, de forma extrajudicial e direta, a renegociação de suas obrigações.

Findo o prazo de 60 dias, o devedor poderá ajuizar um procedimento de jurisdição voluntária, denominado "negociação coletiva", com o que haverá uma suspensão adicional de mais 60 dias para a sequência das negociações, que nessa fase poderá, a pedido do devedor, contar com a participação de negociador nomeado pelo juiz. Encerrado esse prazo adicional, qualquer novo pleito de suspensão será automaticamente autuado como pedido de recuperação judicial.

Nos termos da proposta, para ter direito ao processo de jurisdição voluntária, basta que o devedor comprove redução igual ou superior a 30% de seu faturamento comparado à média do último trimestre correspondente de atividade no exercício anterior, atestado por profissional de contabilidade.

Entretanto, sem nenhum demérito a iniciativas visando endereçar a crise econômica que advirá da pandemia, não se pode ignorar que esses prazos de suspensão - que totalizam 120 dias e durante os quais o devedor realizará apenas uma negociação coletiva com seus credores, que não têm nenhuma obrigação de se vincular ou mesmo de participar das tratativas - tende a se tornar, para um sem número de devedores, muitos dos quais antes mesmo da crise pandêmica já estavam passando por um sério cenário de insolvência sem a tomada de qualquer atitude - apenas uma medida paliativa de trégua nas suas dívidas, enquanto se preparam para o pior.

Nesse aspecto, não bastasse o fato de a suspensão inicial de 60 dias ser automática, portanto favorecendo todo e qualquer devedor, chama atenção o critério utilizado para eleger os beneficiários à suspensão adicional de mais 60 dias. A mera demonstração de redução do faturamento em 30%, sem tomar em conta o resultado, dá margem a inúmeras distorções e pode acabar beneficiando empresas que apenas estavam postergando a tomada de medidas efetivas para endereçar sua crise econômico financeira.

De fato, uma suspensão geral e automática, aliada, na sequência, à simples queda do faturamento, não analisa se a sociedade empresaria ou o empresário vinham tomando as medidas cabíveis para redução de custos e se estamos diante de devedor que merece se socorrer desta medida excepcional por conta da crise derivada da pandemia ou se, na verdade, estamos diante de devedor que já estava passado por crise econômico financeira sem a tomada de qualquer medida eficaz para endereçar a situação.

A este respeito, é importante ter em mente que em outros países em que reformas na legislação de insolvência estão sendo discutidas ou implementadas para endereçar a crise derivada da pandemia, percebe-se a preocupação de averiguar se o problema já existia ou é derivado da situação atual vivenciada mundialmente por conta da covid-19.

Ademais, a lucratividade de uma empresa não está, necessariamente, vinculada ao seu faturamento (1), o que reforça a ideia de que a concessão das vantagens de que se cogita na proposta sejam baseadas também no resultado.

Deve-se ter em mente que em um quadro de recessão extrema, de perda generalizada da capacidade econômica com efeito em cadeia para todos os níveis e setores da indústria e do comércio, o estímulo à moratória geral sem qualquer critério de separar as empresas em crise por conta da covid-19 das empresas em crise pretérita e por outros fatores tende a ter um efeito pernicioso, criando um ciclo vicioso de inadimplência em que ninguém paga ninguém, impedindo a roda da economia de voltar a girar.

Em momentos como esse, parece mais sensato encontrar mecanismos que incentivem um ciclo virtuoso de produtividade e permitam a retomada gradual da atividade econômica.

Repita-se, a iniciativa é louvável, mas deve ser lapidada de modo a se tornar um meio eficiente e justo de solucionar a situação de insolvência geral criada pela covid-19, e não um mecanismo de mera procrastinação de dívidas que, ao final, acabará de todo modo culminando em uma quantidade brutal de pedidos de recuperação judicial e falência e trazendo insegurança jurídica.

Dessa forma, sem a pretensão de neste breve artigo esgotar as alternativas, a proposta poderia ser reformulada em alguns pontos:

  • o direito à suspensão inicial e à denominada "negociação coletiva" deveriam ter por base a demonstração de um resultado positivo no ano anterior aliado à queda abrupta do faturamento derivada da covid-19;
  • o benefício legal também deveria depender da comprovação, via demonstrações contábeis e extratos bancários, da inexistência de caixa para fazer frente às dívidas que se pretende suspender e renegociar;
  • havendo o efetivo soerguimento da empresa, um percentual mensal dos resultados, até o limite da economia obtida com a renegociação, deveria, obrigatoriamente, ser reinvestida no próprio negócio, ficando vedada a sua futura retirada a título de distribuição de lucros ou dividendos; e
  • não incidência do privilégio legal a contratos, inclusive de locação, que já estivessem em situação de inadimplência antes da crise da covid-19, fixando-se para tanto, um marco legal expresso.
A despeito disso e independentemente dos requisitos que venham a ser estabelecidos para que o devedor possa usufruir da vantagem legal, soa excessiva a regra prevista na proposta, que impede reposta, manifestação ou qualquer tipo de averiguação ou perícia sobre o pedido de renegociação coletiva. É compreensível que, em um momento como este, se queira privilegiar a celeridade, mas não parece razoável tolher por completo o direito constitucional ao contraditório. Seria prudente, portanto, autorizar que os credores pudessem, ao menos, apontar eventual não preenchimento dos referidos requisitos, inclusive de modo a permitir uma análise mais criteriosa pelo Poder Judiciário.

Aliás, ponto de fundamental importância é justamente que o Poder Judiciário examine com extremo critério o efetivo preenchimento de tais requisitos, evitando a sua mitigação, tal como se tem verificado no âmbito das recuperações judiciais, cuja efetividade enquanto meio de reestruturação de empresas permanece, notoriamente, em patamares extremamente baixos, transformando-se, na grande maioria dos casos, em mero processo de liquidação de ativos.

Do contrário, teremos, mais uma vez, o desvirtuamento do efeito prático maior vislumbrado pelo legislador, qual seja, a recuperação sustentável da atividade econômica por intermédio do equacionamento justo das dívidas das empresas, de modo a que estas possam superar a situação de crise financeira, voltando a exercer a sua função social, mantendo a fonte produtora, do emprego e dos interesses dos credores.

(1) Tome-se como exemplo matéria veiculada na Revista Exame, destacando que, "em 2016, o faturamento dos 200 maiores grupos empresariais brasileiros diminuiu 19%, a primeira queda em sete anos, mas o lucro somado dessas empresas quase quadruplicou". Matéria disponível em: https://exame.abril.com.br/revista-exame/menos-receita-mais-retorno/

*Daniel Bittencourt Guariento é sócio da área de Contencioso do Machado Meyer Advogados


(O Estado de S. Paulo online - 07.04.2020)