Advogados especialistas em infraestrutura estranharam a notificação enviada pelo Ministério dos Transportes ao presidente da Vale, Eduardo Bartolomeo, referente à cobrança de R$ 25,7 bilhões em outorgas não pagas na renovação antecipada dos contratos das Estradas de Ferro Carajás e Vitória Minas, na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro. Segundo eles, além da insegurança jurídica trazida a um contrato assinado há dois anos e discutido amplamente desde 2015, o fórum adequado para discussões técnicas em torno do tema é a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
“O posicionamento que o Ministério dos Transportes tem adotado com relação à prorrogação antecipada é juridicamente insustentável”, diz Rafael Vanzella, sócio do Machado Meyer. “Ele tem atacado processos administrativos que culminaram com celebração de contratos que preveem investimentos, instrumentos e técnicas mais sofisticadas e modernas do que as existentes originalmente.” Esses processos começaram a ser discutidos em 2015 e “passaram por três gestões de partidos políticos e vieses ideológicos completamente diferentes”, ele afirma.
De acordo com outro advogado que acompanhou de perto a renovação dos contratos, todas as etapas foram discutidas em profundidade, com estudos técnicos e consultas públicas realizadas ao longo dos anos. Após isso, o processo foi submetido ao Tribunal de Contas da União (TCU), que fez recomendações acatadas pela ANTT, antes de o acordo ser finalmente assinado. “Mesmo que houvesse divergência, a praxe seria buscar negociação em reuniões técnicas e menos midiáticas”, diz a fonte.
Na semana passada, o governo fracassou na tentativa de emplacar o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega na presidência da mineradora. A multa imposta à Vale, na mesma semana, teria sido uma forma de “mandar um recado de que o governo continua insatisfeito com a gestão da empresa e sua contribuição ao País”, disse uma fonte. Para outra, apesar de a Vale ser uma empresa que tem ligações com o poder público em dezenas de instâncias, o momento para divulgação da multa não foi casual.
Denis Passerotti, membro da comissão infraestrutura da OAB-SP, afirma que é natural para o governo pedir a revisão da outorga. Porém, cabe à União “demonstrar que valor foi subestimado, por critérios técnicos para pleitear recálculo, como fazem os concessionários quando pedem revisão de contratos”.
A notificação se baseia em decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) que aprovou um acordo entre o governo federal e a Rumo, empresa logística do grupo Cosan. A concessionária pagará R$ 1,5 bilhão adicional pela renovação da concessão da Malha Paulista de ferrovia, feita antecipadamente em 2020.
Porém, diz uma fonte, a natureza da operação com a Vale é diferente. Apesar de ser uma concessionária, os ativos da ferrovia pertencem à própria empresa desde a privatização, em 1997. Os novos controladoras pagaram por eles – e o governo recebeu mais por isso. Já a Rumo assumiu estruturas que pertenciam originalmente à Rede Ferroviária Federal (RFFSA).
No documento, ao qual o Estadão/Broadcast teve acesso, o Ministério dos Transportes dá 15 dias às empresas para informar “as providências adotadas para o cumprimento do rito determinado pelo TCU, com vistas à recomposição ao erário da indenização de ativos não amortizados abatidos da outorga por ocasião do termo aditivo de prorrogação antecipada”.
Caso não haja acordo, o ministério pretende levar a discussão ao TCU, com representação contra as empresas, alegando que a renovação antecipada lesou os cofres públicos.
Para Vanzela, o pressuposto do aditivo é que, assim que o contrato esteja assinado, ele passa a vigorar, a menos que exista vício. Mudanças seriam aplicadas apenas em contratos futuros.
“Em contratos de longo prazo, como os de infraestrutura, forçar a alterações acaba trazendo insegurança jurídica muito grande”, afirma. “O ministério está querendo impor a alteração de processos administrativos já consumados e validados, apontando apenas mera preferência e conveniência.”
Para ele, a demanda também deveria ser buscada via ANTT, que age por meio de processos técnicos. Sem isso, haverá falta de clareza, estabilidade e previsibilidade para o País que precisa atrair investimentos em infraestrutura.
Procurado, o Ministério dos Transportes não respondeu até a publicação desta nota.
Jornalista: BARBIERI, Cristiane
(Agência Estado - 29.01.2024)