O incentivo para o investidor pessoa física na compra das debêntures de infraestrutura, via isenção de Imposto de Renda (IR), sempre incomodou grandes investidores por levar ao achatamento das taxas de retorno desses papéis. Mas, de uns meses para cá, as críticas de parte das empresas também cresceram.

Episódios recentes em que companhias enfrentaram percalços e tiveram de renegociar e redimensionar projetos financiados por essas debêntures ilustram como a pulverização desses papéis em milhares de investidores individuais pode dificultar a reunião de todos eles em assembleia, imprescindível para rever os termos de uma transação. Mudanças nesses projetos, ligados à infraestrutura e de prazo longo, tendem a ser frequentes e pedem quóruns elevados — acima de 90%. Com a dificuldade de atingir esse percentual, a empresa perde flexibilidade para enfrentar mudanças de cenário.

“Não há exemplos de outros países em que o investidor pessoa física foi chamado a financiar projetos de infraestrutura”, afirma Bruno Tuca, sócio do escritório Mattos Filho. “Seria mais adequado incentivar fundos a comprar esses papéis, pois se houver algum problema existe um interlocutor profissional para tratar do assunto com a empresa.” Segundo Tuca, as empresas não estão paralisando emissões, mas tendo todo o cuidado e tempo possíveis para pensar em quóruns que a protejam de uma base muito pulverizada e desinteressada de debenturistas.

Conforme dados de 2019 até junho, a pessoa física fica com 63% das debêntures de infraestrutura vendidas em oferta pública. O fundo de pensão, investidor de longo prazo, com 2,8%. Quando a oferta tem esforços restritos, o varejo também fica com fatia relevante, de 23,2%. Nesses casos, as instituições financeiras e intermediários ligados à operação concentram a maior parte da emissão, mais de 30%.

A equipe econômica prepara ajustes. Eles não incluem a retirada do incentivo para a pessoa física, mas flexibilidade aos emissores, que podem optar por ficar com o benefício em troca de pagar uma remuneração melhor e atrair grandes investidores. O tema tem sido frequente em debates e congressos que tratam dessas operações.

Jorge Simino Junior, diretor de investimentos e patrimônio da Fundação Cesp, afirma que fazer a regra tributária do lado do investidor e não do emissor cria uma distorção, já que quem compra esses papéis não tem a expertise suficiente para entender o produto no detalhamento específico. “A pessoa física acaba comprando o incentivo, e não a tese de investimento. Se acontece algum problema, ela nem fica sabendo ou não entende a relevância que tem para solucioná-lo”, avalia Simino, completando que a análise vale para outros incentivados como os certificados de recebíveis imobiliários (CRI) e do agronegócio (CRA).

O caso das debêntures de infraestrutura, diz ele, fica mais evidente porque cada um desses papéis tem um universo distinto — pode ser um projeto, uma rodovia, uma ferrovia, uma eólica. “Mas o investidor está comprando a isenção do IR, acreditando que a renda fixa não tem risco. Isso é preocupante inclusive do ponto de vista da educação financeira, porque induz a entendimento errado do mercado”, afirma.

A questão específica para o mundo de Simino — o dos fundos de pensão — é que esses papéis que miram a pessoa física saem com uma taxa abaixo da meta atuarial das fundações. O contraponto, reconhece, é que, do lado da empresa, esse tipo de colocação significa captar com custo menor — isso se ela não enfrentar dificuldades mais à frente.

Pedro Junqueira, sócio da consultoria Uqbar, avalia que o incentivo à pessoa física de certa forma atrapalha o crescimento do mercado. Ele observa que o mercado de CRI já existe há mais de 20 anos e ainda não se consolidou como um grande financiador do setor — cerca de 35% dos CRIs vão para a pessoa física; no caso do CRA, 71%.

“Quando o mercado de capitais de fato faz a diferença, o montante precisa vir dos grandes investidores”, diz Junqueira. Ele observa que essas operações são estruturadas, de longo prazo, com garantias e podem envolver securitização. “Tudo fica mais complexo e esse risco estrutural não é bem analisado por esse investidor. É algo pouco fora do lugar querer que a pessoa física olhe esse risco. ”

Pedro Mesquita, executivo da XP Investimentos, discorda das críticas ao incentivo fiscal à pessoa física nas debêntures, CRA e CRI. Segundo ele, é esse investidor o responsável por dar liquidez a esses papéis no mercado secundário, uma vez que o institucional compra para encarteirá-los. “Somente com mais liquidez será possível aumentar os prazos de captação das empresas. A manutenção da isenção no médio prazo será uma indutora importante no mercado de capitais, que ainda é incipiente no Brasil e não está no estágio de mudar o jogo”, afirma.

Ele destaca que o mercado tem distorções, mas muitas emissões têm saído com séries diferenciadas: uma para a pessoa física e outra a taxas mais convidativas para o grande investidor. Assim, a empresa também já tem o incentivo de captar mais barato, resultado da média das séries.

O executivo diz ainda que as casas que distribuem esses produtos — caso da XP — devem estar atentas à adequação ao perfil do cliente. “Se é adequado ou não, depende do risco. É claro que uma debênture de um projeto ‘greenfield’ não é adequado para a pessoa física. Mas por que ela não vai entrar num papel que tenha rating ‘AAA’, de uma linha de transmissão, com risco baixo?”, questiona Mesquita. “Acho que a discussão tem de mudar e ir na linha do risco.”

Marcelo Aragão, chefe da área de mercado de capitais da XP, diz que o mais relevante hoje seria isentar o investidor estrangeiro na compra do crédito privado, aos moldes do que já existe nos títulos públicos. “Seria mais um bolso”, afirma. A medida também está em análise pelo governo.

Um gestor de recursos destaca que a grande questão no setor de infraestrutura no Brasil não é na ponta do investidor, mas do emissor. “O gargalo do emissor é em função das dificuldades da prática, da insegurança jurídica, de o empresário achar que ainda tem muito risco regulatório, trabalhista, de licenças etc.”

Alberto Faro, sócio da área infraestrutura do Machado Meyer Advogados, diz que não se pode ignorar que as debêntures de infraestrutura tiveram sucesso em expandir a fatia do mercado nesses projetos no momento de retirada do BNDES. “Sempre há espaço para aprimorar as regras e endereçar os problemas que vão aparecendo ao longo do tempo. Esse será o caso da participação de investidores no dia a dia das empresas.”

Valor Econômico
https://www.valor.com.br/financas/6369757/incentivo-pessoa-fisica-em-debenture-pode-afetar-projetos
(Notícia na Íntegra)