Por Thiago A. Spercel

A maioria dos países oferece vantagens tributárias aos doadores e às entidades apoiadas como forma de incentivar a filantropia. Incentivos fiscais à filantropia se justificam por três argumentos principais: (i) doações filantrópicas devem ser deduzidas da base de cálculo dos doadores, na medida em que reduzem sua disponibilidade econômica sem representar um acúmulo de riqueza pessoal; (ii) doações filantrópicas representam um subsídio ao governo, na medida em que os cofres públicos economizarão recursos na prestação de serviços essenciais de responsabilidade do Estado e que passam a ser em parte atendidos por organizações não governamentais; e (iii) doações filantrópicas possibilitam o fortalecimento de uma sociedade civil organizada, vibrante e plural, que não dependa unicamente do governo para seu desenvolvimento e bem estar social[1].

Normalmente, os incentivos fiscais à filantropia apresentam-se de duas maneiras: (i) do ponto de vista do doador, pela dedutibilidade dos valores doados no cálculo e recolhimento do seu imposto de renda; e (ii) do ponto de vista das entidades não-governamentais receptoras das doações, pela não incidência de tributação sobre doações por elas recebidas, nos casos em que as doações privadas seriam normalmente tributadas. Infelizmente, os incentivos fiscais à filantropia no Brasil são muito limitados em ambos os aspectos, e essa fragilidade ficou muito evidente nas doações emergenciais relacionadas ao combate dos efeitos da pandemia do Covid-19.

Tratando inicialmente da dedutibilidade, constatamos que esse tipo de incentivo é muito antigo e praticado em larga escala ao redor do mundo. No Reino Unido, por exemplo, a legislação permite que doadores possam deduzir do seu imposto de renda doações filantrópicas para organizações sociais desde 1842. De forma similar, a dedutibilidade de doações filantrópicas surgiu nos Estados Unidos da América em 1917 com o War Revenue Act, permitindo deduções para “doações ou legados feitos no exercício social para corporações ou associações organizadas e operadas exclusivamente para propósitos religiosos, assistenciais, científicos ou educacionais, ou para sociedades atuantes na prevenção de crueldade à crianças e animais.”[2]

Um estudo da Charities Aid Foundation – CAF[3] cobrindo as 24 nações que representam 80% do PIB global identificou que praticamente todos os países pesquisados permitem doadores deduzir as doações filantrópicas de seu imposto de renda, com limites elevados de dedutibilidade, tais como Reino Unido, Austrália, Irlanda e Índia (100%), Canadá e França (75%), Estados Unidos da América (50%) e Japão (40%). Alguns países, como Singapura, permitem, inclusive, que as deduções sejam carregadas para os exercícios seguintes, até o limite de 300% do imposto devido.

No Brasil, as deduções aplicáveis às pessoas físicas são limitadas a 6% do imposto devido, e somente podem ser utilizadas pelas pessoas que utilizam a Declaração de Imposto de Renda (DIRPF) com a opção de tributação por deduções legais (Declaração Completa). O benefício não é concedido para as pessoas que usam a declaração com a opção de tributação por desconto simplificado (Declaração Simplificada).

No caso da pessoa jurídica, somente podem ser deduzidas as doações (i) a instituições de ensino e pesquisa cuja criação tenha sido autorizada por lei federal até o limite de 1,5% do lucro operacional; (ii) para organizações da sociedade civil que prestem serviços gratuitos em benefício da comunidade onde atuem até o limite de 2% do lucro operacional; (iii) para entidades qualificadas como organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP) até o limite de 2% do lucro operacional; e (iv) em favor de projetos culturais aprovados na forma da regulamentação do Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC) até o limite de 1,5% do lucro operacional.

Além disso, a dedutibilidade é permitida apenas às empresas que apuram o imposto de renda e contribuição social sobre o lucro líquido com base no Lucro Real e têm tributo a pagar naquele determinado exercício. Não há possibilidade de dedução das doações para as empresas tributadas pelo Lucro Presumido, Arbitrado ou Simples Nacional.

Portanto, a dedutibilidade das doações filantrópicas no Brasil tem um percentual muito limitado, e somente pode ser aproveitada pelas grandes empresas que são tributadas no Lucro Real e pela classe alta da população, que apresenta declaração completa de imposto de renda.

No caso da tributação das doações filantrópicas pelas entidades receptoras, a situação brasileira é ainda mais preocupante.

O Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD) tem fatos geradores que cobrem três situações que são extremamente distintas entre si: a transmissão de bens por herança, a doação privada entre vivos e a doação filantrópica para projetos de interesse público. Além disso, embora suas regras gerais sejam previstas na Constituição Federal, por se tratar de um imposto estadual, cada Estado tem liberdade para definir as alíquotas aplicáveis (que variam de 2% a 8% do valor doado), as bases de cálculo e os limites de isenção, o que leva a uma falta de uniformidade e insegurança jurídica para as entidades do terceiro setor.

O Brasil infelizmente tributa as doações filantrópicas de forma completamente diferente do resto do mundo. Uma pesquisa da FGV Direito[4] identificou que, entre os 75 países pesquisados, apenas Brasil, Croácia e Coreia do Sul tributam as doações filantrópicas da mesma forma que doações privadas. No Brasil, por não se diferenciar entre heranças e doações privadas (que podem e devem ser tributadas) e as doações filantrópicas (que merecem incentivo fiscal), a agenda filantrópica acaba sendo prejudicada.

No sistema brasileiro, quando a doação é feita a entidades sem fins lucrativos, cabe ao receptor dos recursos se enquadrar como entidade imune ou isenta, e obter previamente todas as certificações, caso contrário terá que pagar o ITCMD. A Constituição Federal atribui imunidade para as entidades sem fins lucrativos de educação, assistência social e saúde, e isenção para as demais entidades sem fins lucrativos. Ocorre que as leis estaduais estabelecem uma série de requisitos complementares e procedimentos burocráticos e demorados que devem ser feitos antes da doação, tais como obtenção de declarações de utilidade pública e registro na respectiva Secretaria da Fazenda Estadual. Muitas das organizações governamentais não conseguem atender a todos esses requisitos em tempo hábil para receber as tão necessárias doações, em especial em se tratando de doações emergenciais.

No Estado do Rio de Janeiro, como medida de resposta às crises sanitária e econômica geradas pela pandemia do Covid-19, foi baixado o Decreto Estadual nº 47.031, de abril de 2020, buscando facilitar as doações para entidades de assistência social, saúde ou educação. Com esse novo decreto, independente das formalidades de certificações e registros, as organizações sem fins lucrativos poderão fazer uma autodeclaração como entidades isentas, ficando assim habilitadas a receber doações sem a incidência do ITCMD, mas obviamente sem prejuízo de uma possível fiscalização posterior por parte do fisco. Esse decreto acaba desburocratizando o fluxo da doação filantrópica e facilitando que esses recursos efetivamente cheguem às entidades não-governamentais. Também temos conhecimento de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC nº 14, de abril de 2020, de autoria da Senadora Mara Gabrili), que visa alterar o artigo 155 da Constituição Federal para vedar a instituição do ITCMD sobre as transmissões e doações às organizações da sociedade civil e aos institutos de pesquisa sem fins lucrativos.

Nos dias atuais, ficou evidente a importância da filantropia e do terceiro setor como forças auxiliares do Estado no atendimento da agenda pública de saúde, educação e assistência social, bem como no enfrentamento de situações emergenciais para as quais o Estado não está preparado para enfrentar sozinho. Precisamos iniciar discussões mais estruturantes de incentivo ao terceiro setor no Brasil, o que passa necessariamente por medidas de incentivos fiscais à filantropia, entre elas as alterações das regras do ITCMD e o aumento dos limites de dedutibilidade das doações filantrópicas.


[1] REICH, Rob. Towards a Political Theory of Philanthropy. In: ILLINGWORTH, P. and POGGE, T. Giving Well: The Ethics of Philanthropy, 2011, Oxford, Oxford University Press. DAVIES, Rhodri. Public Good by Private Means, 2015, Alliance Publishing Trust, Charities Aid Foundation.

[2] UNITED STATES, U.S. Senate, 1917, chapter 63, 1201(2).

[3] CHARITIES AID FOUNDATION, Donation states – An international comparison of the tax treatment of donations, May 2016.

[4] GRUPO DE INSTITUTOS, FUNDAÇÕES E EMPRESAS (GIFE), ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO (FGV DIREITO SP), Fortalecimento da Sociedade Civil: redução de barreiras tributárias às doações, 2019.

Thiago A. Spercel – sócio da área empresarial do Machado meyer Advogados.

(JOTA - 22/07/2020)