O ICMS é um dos tributos mais importantes em termos de arrecadação e de participação na carga fiscal no Brasil. Mais do que isso, exerce papel relevante na estrutura federativa, garantindo fonte de receita aos estados e municípios.

Por outro lado, também é um dos tributos que mais gera discussões, sobrecarregando o sistema judiciário e trazendo indefinição e insegurança jurídica aos negócios. Ou seja, tal como estruturado hoje é um fator que prejudica o crescimento do investimento e consequentemente da própria arrecadação dos estados.

Uma das razões pelas quais o ICMS gera discussões é por se tratar de imposto estadual, inserido no âmbito de competência dos estados e do Distrito Federal, havendo, portanto, 27 entes tributantes.

Além da complexidade causada por 27 legislações diferentes, há inúmeras discussões que giram em torno de operações envolvendo mais de um estado.

Nessas operações, é comum o surgimento de dúvidas a respeito de qual seria o estado competente para tributar, o que pode gerar conflitos de competência entre os entes políticos, e, para os contribuintes envolvidos, infindáveis discussões e longa convivência com contingências relevantes do ponto de vista financeiro.

Tais conflitos muitas vezes giram em torno do fato de que nas operações mercantis sujeitas ao ICMS há dois potenciais critérios para orientar a incidência do ICMS: o critério físico, decorrente do fluxo físico da mercadoria, e o critério jurídico, orientado pelo fluxo jurídico da mercadoria.
Em muitas situações a operação física ocorre em determinado estado e a operação jurídica acontece em outro. É o caso, por exemplo, de operação realizada por indústria localizada no estado de São Paulo (SP) que vende mercadoria para comercializadora localizada no estado do Rio de Janeiro (RJ) que, por sua vez, revende a mesma mercadoria a consumidor localizado também no estado de SP.

Nesse exemplo, embora o fluxo jurídico da mercadoria seja marcado por duas operações interestaduais consecutivas, a entrega pode ser feita pelo produtor diretamente ao adquirente, de modo que o estado de SP poderia entender que o fluxo físico da mercadoria ocorreu dentro de seu território, exigindo o recolhimento do ICMS com base na alíquota interna, que costuma ser superior à alíquota incidente em operações interestaduais. Os estados onde ocorreu o fluxo jurídico, por sua vez também podem se julgar aptos a receber o imposto.

Dentre as operações de relevância para a controvérsia critério físico vs. critério jurídico, destacamos a importação. A disputa, nesse caso, se dá, dentre outras formas, entre o estado em que ocorre a operação física de importação - onde está localizado o porto/onde ocorre desembaraço aduaneiro, por exemplo - e o estado em que está localizado o destinatário jurídico, o comprador da mercadoria.

Um simples exemplo é o caso de empresa localizada no estado de Minas Gerais (MG) que efetua a importação de produto por meio de portos do estado do RJ, em função da ausência de portos em seu território. O destinatário jurídico da mercadoria é o adquirente da mercadoria importada e está localizado no estado MG.

Esse é apenas um dos exemplos de controvérsia possível. Há diversas outras situações em que podem surgir discussões entre os estados e o resultado disso, para muitos contribuintes, é não saber para qual estado deve ser recolhido o tributo, e conviver com a incerteza e carregar, não sem custos, discussões judiciais por anos e anos. Ou mesmo ver inviabilizado seu investimento e desenvolvimento de negócios.

Historicamente, os Tribunais Superiores têm priorizado a observância do critério jurídico em detrimento do critério físico, definindo, em diversas oportunidades, que o estado competente para arrecadar o ICMS devido na importação é o estado de localização do destinatário jurídico da mercadoria.

Nesse cenário, no último dia 24, o STF finalizou o julgamento de caso sobre o tema, no AgRE 665.134 (Tema 520 da Repercussão Geral), fixando, por unanimidade, a seguinte tese proposta pelo relator:

"O sujeito ativo da obrigação tributária de ICMS incidente sobre mercadoria importada é o estado-membro no qual está domiciliado ou estabelecido o destinatário legal da operação que deu causa à circulação da mercadoria, com a transferência de domínio."

A base constitucional para incidência do ICMS-importação é o artigo art. 155, §2º, IX da CF/88, que dispõe que o imposto devido sobre a entrada de mercadoria importada do exterior será atribuído "ao estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço".

Com isso, ao traçar todo o panorama geral da análise de mérito, o ministro relator Edson Fachin, considerou que o destinatário final indicado no art. 155, §2º, IX da CF/88 deveria ser interpretado como o destinatário jurídico da operação, pois o aspecto de relevância para incidência do ICMS-importação seria a transferência de domínio, ou seja, a operação de compra e venda realizada entre exportador e importador.

No âmbito infraconstitucional, a legislação relevante para análise é o art. 11, I, 'd' da LC 87/96, o qual prevê que o local da operação de importação será "o do estabelecimento onde ocorrer a entrada física".

Analisando o conteúdo do art. 11, I, 'd' da LC 87/96 (que expressamente dispõe sobre a "entrada física" no estabelecimento importador), o ministro destacou que "o dinamismo das relações comerciais não comporta a imposição da entrada física da mercadoria no estabelecimento do adquirente-importador para configurar a circulação de mercadoria".

Diante disso, declarou a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, para afastar a interpretação de que o local da operação seria apenas e necessariamente o da entrada física da mercadoria.

Com base nesses comentários, o relator concluiu que "em relação à importação por conta própria, não há maiores dúvidas (...), o sujeito ativo da obrigação tributária é o estado-membro tributante no qual está domiciliado ou estabelecido o destinatário legal da operação da qual resulta a transferência de propriedade da mercadoria".

Além disso, também trouxe as definições do destinatário jurídico (i) em operações de importação por conta e ordem de terceiro, que seria o adquirente da mercadoria e contratante da prestação de serviços de despacho aduaneiro e (ii) em operações de importação sob encomenda, que seria a empresa importadora (via de regra Trading Companies) a qual, posteriormente, revenderá a mercadoria importada ao encomendante.

Veja-se que em diversos trechos do voto o critério jurídico foi evidentemente prestigiado, em linha com a jurisprudência já majoritária do STF.

É certo que o caso concreto possuía peculiaridades, sendo uma delas a de que em ambos os estados implicados na controvérsia estavam localizados dois estabelecimentos de uma mesma pessoa jurídica, e não de pessoas jurídicas distintas como em larga parcela das operações em que surge a discussão.

Mas o fato é que o STF reforça a prevalência do critério jurídico sobre o critério físico.

A definição quanto à discussão, ao reforçar tal linha, serve a muitas operações que extrapolam o comércio exterior mas é especialmente relevante nessas últimas.

Trata-se confirmação relevante para as Trading Companies, mas também para diversos outros segmentos de mercado. Destacamos, na presente abordagem, o mercado de gás natural.

Um relevante exemplo de aplicação dessa controvérsia ao mercado de gás natural é a discussão relativa à importação de gás natural da Bolívia, que, apesar de nacionalizado por um destinatário localizado em um estado, é remetido em fluxo físico contínuo a empresas distribuidoras localizadas em outros estados, por infraestrutura de transporte que se encontra espalhada por mais de um estado da federação.

Nesse sentido, o estado de Mato Grosso do Sul ajuizou as Ações Cíveis Originárias nº 854 (em face de São Paulo), nº 1076 (em face de Santa Catarina) e nº 1093 (em face do Rio Grande do Sul) perante o STF visando ao reconhecimento definitivo da sua legitimidade como sujeito ativo para a cobrança do ICMS incidente nas operações de importação de gás natural advindo da Bolívia, sob o fundamento de que o estabelecimento importador jurídico está localizado em seu território.
Nesses casos, o STF, à luz do que já vem entendido, concedeu liminar determinando que o ICMS-importação seria devido ao estado onde o estabelecimento importador, no caso destinatário jurídico, estiver localizado.

Diversos trechos da liminar concedida pelo ministro Celso de Mello na ACO nº 854 evidenciam que o critério jurídico tem sido prestigiado, ainda que, segundo o relator, os critérios físico e jurídico coincidam no caso concreto, pois a entrada física ocorreu no Mato Grosso do Sul, local do City gate e de medição do gás natural (critério físico).

A questão também é relevante para a importação de gás natural liquefeito ("GNL"), especialmente quando há diversidade de Estados envolvidos na importação (circulação física e jurídica) e mesmo para a comercialização de gás natural envolvendo operações jurídicas desvencilhadas de fluxo físico.

Assim, a decisão final em sede de Repercussão Geral, embora infelizmente não assegure o fim das diversas discussões em torno da matéria, tem o potencial de sinalizar pela confirmação do critério jurídico, sendo relevante a contribuintes de diversos mercados, com destaque para o mercado do gás natural, impactando, por exemplo, nas discussões mencionadas acima.

CAMILA GALVÃO - Sócia de Machado Meyer Advogados.
ISABELA CANTARELLI - Advogada de Machado Meyer Advogados.

(JOTA - 18.05.2020)
(Notícia na íntegra)