A indústria aeronáutica vem evoluindo rapidamente nos últimos anos, principalmente em relação à mobilidade aérea urbana e ao ecossistema Advanced Air Mobility (AAM), no qual as novas aeronaves elétricas eVTOLs (sigla de electric vertical take-off and landing) são protagonistas.

Ainda em fase de desenvolvimento por diversas empresas, os eVTOLs são veículos elétricos de pouso e decolagem vertical, cuja proposta é ser uma alternativa acessível para o transporte aéreo urbano, se comparados, por exemplo, a helicópteros. Entretanto, com o avanço da tecnologia, novos desafios surgem para sua implementação, incluindo questões relativas à regulação aeronáutica, ao compartilhamento do espaço aéreo com outras aeronaves e à financiabilidade dos eVTOLs.

Em 2024, houve avanços importantes sobre a certificação dessas aeronaves e do ecossistema AAM pelos principais reguladores mundiais, como a americana Federal Aviation Administration (FAA) e a europeia European Aviation Safety Agency (Easa), além da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e do Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea) – que vêm trabalhando ativamente nos avanços regulatórios para a introdução dessa nova tecnologia no Brasil.

Entre as ações da Anac, por exemplo, estão:

  • a realização de uma consulta setorial sobre os requisitos de emissão de licenças e habilitações para eVTOLs pela Anac;
  • a publicação do Edital 22/24, que teve como objetivo selecionar interessados em apresentar e implementar soluções que contribuam para a regulação de vertiportos em ambiente regulatório experimental – sandbox regulatório; e
  • a publicação dos critérios de aeronavegabilidade para a aeronave desenvolvida pela brasileira Eve Air Mobility.

Já por parte dos Decea, a ação de maior destaque foi a publicação da Concepção Operacional UAM Nacional (PCA 351-7), documento que estabelece as diretrizes para mobilidade aérea urbana (UAM) no país.

O desafio de viabilizar o financiamento para a aquisição dos eVTOLs


À medida que a tecnologia dos eVTOLs amadurece e as regulações vão sendo desenvolvidas, o mercado aeronáutico começa a olhar para outro aspecto importante: como se custeará a aquisição dessas aeronaves no futuro?

Esse questionamento é fundamental, pois a viabilidade econômica da operação dos eVTOLs dependerá não apenas do desenvolvimento tecnológico e regulatório, mas também da existência de mecanismos financeiros adequados para viabilizar sua aquisição e operação em larga escala.

A experiência do setor aeronáutico tradicional demonstra que a oferta de instrumentos como leasing e financiamentos foi determinante para a expansão do mercado de aviões e helicópteros, permitindo que operadores e empresas pudessem acessar equipamentos de alto valor agregado sem a necessidade de imobilizar grandes volumes de capital próprio.

Assim, é razoável supor que, à medida que os eVTOLs avancem em maturidade e obtenham certificações, surgirão produtos financeiros específicos para esse segmento, adaptados às suas particularidades operacionais e regulatórias.

Além disso, será essencial que o arcabouço jurídico acompanhe essa evolução, para garantir segurança jurídica tanto para operadores quanto para financiadores, especialmente em relação à constituição de garantias, registro de propriedade e execução de direitos creditórios em caso de inadimplência.

A consolidação do mercado de eVTOLs no Brasil e no mundo, portanto, dependerá não só do progresso tecnológico e regulatório, mas também da criação de um ambiente jurídico e financeiro robusto, capaz de sustentar o crescimento sustentável desse novo modal de mobilidade aérea.

Dado o alto valor de aviões e helicópteros, hoje empresas e instituições financeiras oferecem diversos produtos para a aquisição e operação dessas aeronaves. Há, por exemplo, o leasing e linhas de financiamento, que abastecem um mercado mundial já consolidado responsável por movimentar bilhões de dólares por ano. É de se esperar que os eVTOLs venham a fazer parte, ainda que em menor escala, desse mesmo mercado.

Em um mercado globalizado, porém, não se pode ignorar o fato de cada jurisdição ter seu próprio conjunto de leis e normas, incluindo, por exemplo, os direitos de proprietários de aeronaves ou detentores de garantias sobre esses veículos.

Como resultado, diferentes jurisdições apresentam diferentes níveis de risco com relação à proteção dos direitos sobre aeronaves. Esses riscos são precificados pelos proprietários e credores e incorporados nas taxas de financiamento e leasing, representando custos repassados aos operadores das aeronaves.

A Convenção da Cidade do Cabo


Para mitigar esse risco e trazer uma maior harmonização dos direitos de credores sobre aeronaves entre as diversas jurisdições, foi assinada em 2001 a Convenção da Cidade do Cabo (ou Cape Town Convention) – formalmente conhecida como Convenção sobre Garantias Internacionais sobre Equipamentos Móveis e seu Protocolo sobre equipamentos aeronáuticos. Ambos foram promulgados e incorporados ao ordenamento do Brasil em 2013 por meio do Decreto 8.008/13.

Essa convenção, já amplamente adotada ao redor do mundo e nos principais mercados aeronáuticos, tem um fundamento simples: por meio do tratado, são estabelecidos premissas e direitos que visam proteger os interesses dos credores, sejam esses arrendadores de aeronaves ou aqueles que têm garantias sobre elas.

Tais premissas devem ser adotadas pela jurisdição em questão, que se compromete, ainda, a ajustar suas normas e leis internas, conforme necessário, para implementar as disposições e procedimentos da convenção.

À medida que a jurisdição promove essas mudanças e concede maior proteção aos direitos dos credores de aeronaves, o risco de negócios com operadores nessa jurisdição diminui, o que resulta em taxas de leasing e condições de financiamento mais vantajosas para os operadores.

A Convenção da Cidade do Cabo, portanto, é um tratado de grande relevância para o mercado de financiamento e leasing de aeronaves. Ela dá maior segurança jurídica às transações e, consequentemente, estimula o desenvolvimento da atividade econômica desse setor.

O impasse em torno da definição dos eVTOLs sob a convenção


A Convenção da Cidade do Cabo, porém, define em seu texto o conceito de aeronaves e helicópteros, estabelecendo os respectivos requisitos para que suas provisões se apliquem a eles. Ocorre que esses requisitos foram pensados considerando a realidade de 2001, quando o conceito de eVTOL ainda não existia na indústria.

Assim, há hoje um impasse: embora a convenção tenha potencial para favorecer o desenvolvimento do mercado internacional de eVTOLs e acelerar a disseminação e o acesso a essa tecnologia, o conceito de eVTOL não é abarcado por ela, pelo menos não expressamente.

Uma solução para esse impasse seria alterar o texto atual da convenção, mais especificamente do seu protocolo sobre equipamentos aeronáuticos, ou mesmo criar um novo protocolo específico para eVTOLs.

Essa solução, porém, está longe de ser simples: tratando-se de um tratado internacional, alterar seu texto ou produzir um novo protocolo depende de longos e complexos procedimentos internacionais, além da necessidade de ratificação e internalização das alterações por cada país signatário.

Eventualmente, essa pode ser a solução definitiva a ser adotada. O tempo para sua implementação, porém, pode não atender à necessidade cada vez mais premente de investimentos em eVTOLs e ao desenvolvimento – que avança a passos largos – dessa tecnologia.

Uma solução intermediária: equiparar eVTOLs a helicópteros


Talvez haja uma solução intermediária, elegante e simples: a equiparação conceitual de eVTOLs a helicópteros para fins de aplicabilidade da convenção.

Em termos técnicos, há uma clara distinção entre o que se propõe o eVTOL e os helicópteros atuais. Entretanto, sob a perspectiva jurídica, e em benefício do desenvolvimento do mercado aeronáutico e das vantagens que os eVTOLs proporcionarão, entendemos que os critérios aplicados na convenção para conceituar um helicóptero poderiam se estender ao eVTOL, conferindo à nova tecnologia o mesmo tratamento dado pela convenção aos helicópteros.

De acordo com o protocolo da convenção, helicópteros “significam máquinas mais pesadas que o ar (exceto aquelas utilizadas nos serviços militares, de alfândega ou de polícia), cuja sustentação em voo é assegurada principalmente por reações do ar geradas por um ou mais rotores a hélices, em grande parte verticais, e que sejam de modelo certificado pela autoridade aeronáutica competente como aptas a transportar (i) no mínimo cinco (5) pessoas incluindo a tripulação; ou (ii) mercadorias pesando mais que 450 quilos, junto com todos os módulos ou outros acessórios, peças e equipamentos instalados, incorporados ou acoplados, bem como todas as informações, manuais e registros a eles relativos.”

Pela leitura da definição acima e sob uma interpretação estritamente jurídica, entendemos que as qualificantes para a conceituação de helicópteros sob a Convenção da Cidade do Cabo já comportam o conceito de eVTOL – helicópteros também são considerados aeronaves VTOL, o que reforça esse argumento.

Sob o ponto de vista de certificação e operação, não há dúvidas que helicópteros e eVTOLs têm diferenças relevantes e não serão tratados como um único tipo de aeronave pelos reguladores.

Entretanto, para fins de financiabilidade e aplicabilidade da Convenção da Cidade do Cabo, não enxergamos qualquer viés negativo na equiparação entre esses dois tipos de aeronaves, considerando que isso pode ser uma alternativa temporária enquanto a convenção não trouxer previsões específicas para eVTOLs. Afinal, a inclusão de eVTOLs sob a convenção favoreceria todo o mercado, sem prejuízo visível para nenhum stakeholder.

Nem todo eVTOL, porém, se enquadraria no conceito da convenção pela proposição aqui feita – ainda deverão ser observados os requisitos mínimos de capacidade de passageiros ou cargas, tal como aplicáveis para helicópteros. Pelos protótipos mais relevantes em desenvolvimento, a grande maioria dos eVTOLs está sendo planejada para capacidades menores e pode acabar excluída dos benefícios da convenção. Por outro lado, os eVTOLs de maior porte – que tendem a ter custo maior e poderão depender de um volume de crédito maior para aquisição – já poderiam se enquadrar na convenção pela interpretação aqui proposta.

Diante da possível exclusão de uma parte relevante dos eVTOLs – aeronaves menores e que tendem a ser o foco da indústria nos próximos anos - ressaltamos a importância da provocação aqui posta para se rever os termos da Convenção da Cidade do Cabo, a fim de conceituar e trazer disposições específicas para essas novas aeronaves no futuro – que se mostra mais próximo do que longínquo.

Apesar dessa proposição resultar de uma interpretação lógica e, sob a perspectiva de mercado, favorecer o desenvolvimento do setor aéreo, ela ainda suscita discussões.

Mesmo que venha a ser adotada – o que nos parece bastante positivo –, certamente serão necessárias ações concretas dos stakeholders envolvidos para dar segurança jurídica à interpretação de que eVTOLs são, para fins da convenção, equiparáveis a helicópteros. Entre esses stakeholders estão a Organização da Aviação Civil Internacional (Icao), o Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (Unidroit), os fabricantes de eVTOLs e as jurisdições signatárias da convenção.

Não há dúvidas de que o debate sobre eVTOLs e a Convenção da Cidade do Cabo ainda está apenas no início. Mas o avanço acelerado no desenvolvimento dessa tecnologia já exige um olhar atento e crítico às lacunas legais existentes, para que se possa aprimorar nosso ambiente regulatório e permitir a implementação segura – tanto técnica quanto jurídica – dos eVTOLs.

Nossa equipe permanece engajada e atenta às discussões atuais e futuras, empenhada em contribuir para que os eVTOLs deixem de ser uma promessa distante e se tornem, em breve, uma realidade.