Oferecer alternativas seguras de captação de recursos e investimentos às companhias e aos investidores é, sem dúvida, crucial para fomentar a atividade econômica e o mercado de capitais brasileiro, em especial em cenário de crise.

Um instrumento bastante usado no dia a dia das companhias brasileiras são as ações preferenciais. Além de permitir grande flexibilidade na definição da estrutura de capital, sem a perda do controle societário, as ações preferenciais podem oferecer amplo leque de direitos a investidores, atraindo aqueles que não têm interesse em participar da gestão.

Por usualmente não conferirem direito de voto aos seus titulares, concedendo-lhes, em contrapartida, preferências que muitas vezes se assemelham a vantagens econômicas inerentes a instrumentos de dívida, as ações preferenciais costumam ser consideradas instrumentos de natureza híbrida. Tal fato era levado em consideração na análise das demonstrações financeiras, mas não resultava, até 2010, na obrigação de contabilizar determinadas ações preferenciais como passivo financeiro.

Desde 2010, quando as companhias e sociedades de grande porte brasileiras passaram a adotar o CPC 39 -“Instrumentos Financeiros: Apresentação”, elaborado com base no IAS 32 – Financial Instruments: Presentation (IASB) (CPC 39), até mesmo uma ação, que por natureza representa uma parcela do capital social, pode ser considerada um passivo financeiro. Isto é, independentemente da forma jurídica, a análise das características essenciais de determinado instrumento é fundamental para a sua adequada classificação como passivo ou patrimônio.

A aplicação do IAS 32 e do CPC 39 levantou e continua levantando muitos debates e polêmicas no âmbito internacional e nacional. Alguns estudos estrangeiros e locais sustentam que as ações preferenciais, independentemente de suas características, deveriam ser classificadas como passivo financeiro. Essas análises demonstram, inclusive, que a aplicação do IAS 32 teria resultado no desuso das ações preferenciais em determinados países, como seria o caso da Holanda.

Diante da grande importância prática das suas diretrizes e dos impactos relevantes da classificação de ativos e passivos na estrutura de capital de uma companhia, o CPC 39 continua sendo tema de debates no mercado e a sua aplicação muitas vezes constitui um desafio para as companhias.

Nesse contexto, analisamos aqui quais circunstâncias levariam ao enquadramento das ações preferencias como passivo financeiro com base nos instrumentos jurídicos da Lei das Sociedades por Ações e das diretrizes previstas no CPC 39.

De acordo com o artigo 17 da Lei das Sociedades por Ações, as ações preferencias podem ter as seguintes vantagens: (i) prioridade na distribuição de dividendo, mínimo ou fixo; (ii) prioridade no reembolso de capital, com prêmio ou sem ele; e/ou (iii) acumulação de tais preferências.

A prioridade no reembolso de capital, com ou sem prêmio, é um direito que pode ser enquadrado facilmente no conceito de patrimônio, uma vez que trata de interesse residual aos ativos da companhia. Já a prioridade na distribuição de dividendo, fixo ou mínimo, é um direito que se assemelha mais, à primeira vista, ao conceito de passivo.

Um passivo pode ser definido como: (i) uma obrigação contratual de entregar, ou trocar em condições desfavoráveis, caixa ou ativos financeiros com outra pessoa, ou ainda (ii) uma obrigação presente, derivada de eventos passados, cuja liquidação se espera que resulte na saída de recursos da entidade capazes de gerar benefícios econômicos.

Por exemplo, os dividendos fixos e os juros prefixados se assemelham, na medida em que tais dividendos podem ser fixados com base em valor predeterminado, muitas vezes relacionado com o próprio capital investido. No entanto, apesar da semelhança, nos parece incorreto classificar ação preferencial como passivo financeiro com base apenas nessa característica. Isso porque a distribuição está condicionada à geração futura de lucros. Ou seja, a companhia não teria, por si só, uma obrigação presente de pagamento nesse caso.

Em princípio, entendemos, portanto, que as ações preferenciais, em sua essência, deveriam ser enquadradas no conceito de patrimônio. Ocorre que vários outros direitos podem estar atrelados às ações preferenciais e determinados no estatuto social das companhias, tais como (i) direitos de resgate parcial ou integral do investimento e/ou (ii) direitos que afetem a discricionariedade da companhia na distribuição de dividendos.

O CPC 39 determina expressamente que as ações preferenciais são consideradas passivo financeiro sempre que conferem direito de resgate a ser exercido em data determinada ou a critério do seu titular, independentemente da incapacidade potencial da companhia de resgatar tal ação. Por outro lado, quando o resgate se dá a critério da companhia, tal ação preferencial não representa uma obrigação presente e, portanto, não preenche os requisitos de um passivo financeiro.

Além do resgate, o CPC 39 também indica que as ações preferencias com prioridade nas distribuições de dividendos, cumulativas ou não, serão consideradas instrumentos patrimoniais, desde que as distribuições possam ser realizadas a critério do emissor. Ou seja, se houver qualquer obrigatoriedade de distribuição por parte do emissor, tal ação, a contrario sensu, deverá ser considerada um passivo financeiro.

O CPC 39 não dá outros exemplos concretos; estabelece apenas que todos os demais direitos conferidos por determinada ação preferencial deverão ser analisados para identificar se ela tem características fundamentais de patrimônio ou de passivo financeiro.

Como o CPC 39 não é taxativo, a correta classificação das ações preferenciais deverá refletir a essência dos seus direitos segundo os conceitos de passivo e patrimônio. Muitas vezes, isso torna a classificação complexa, principalmente em estruturas de captação de recursos não convencionais e com diversas nuances.

As companhias devem avaliar, o quanto antes possível, a substância dos direitos atrelados às ações preferenciais à luz da Lei das Sociedades por Ações e do CPC 39, para evitar surpresas ou questionamentos em relação à contabilização de tal investimento.

Caso a contabilização seja distinta da intenção inicial, os impactos poderão ser relevantes em covenants financeiros, podendo gerar o vencimento antecipado de dívidas e o cross-default de contratos financeiros. Além disso, considerando o tratamento fiscal distinto entre os proventos derivados de uma ação (dividendos) e de instrumentos de dívida (juros), a incorreta classificação pode resultar até mesmo em passivo tributário para seus titulares e para a companhia.

A correta classificação das ações preferenciais é fundamental para que a situação financeira e patrimonial de uma companhia esteja devidamente refletida nas suas demonstrações financeiras, evitando assimetrias de informações no mercado que possam prejudicar credores e investidores.