Por Camila Galvão e Anderi Silva
Graduada pela Faculdade de Direito da USP
Pós-graduada na Faculdade de Direito da PUC-SP (Especialista Lato Sensu em Direito Tributário)
Sócia da área tributária do escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados
Igor Guedes Lueska
Graduado pela Escola de Direito da FGV-SP
Pós-graduado na Faculdade de Direito da PUC-SP (Especialista Lato Sensu em Direito Tributário)
Advogado da área tributária do escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados
I. INTRODUÇÃO: A CONTROVÉRSIA E O RECONHECIMENTO DA SUA REPERCUSSÃO GERAL
Recentemente, no dia 22/09/2015, foi publicada decisão do STF reconhecendo repercussão geral a um tema objeto de muita controvérsia entre as autoridades fiscais e os contribuintes, qual seja a juridicidade da tributação, por PIS/COFINS, de créditos presumidos do ICMS.
A repercussão geral foi reconhecida nos autos em que interposto, pela União Federal, o RE 835.818/PR, contra acórdão proferido em 2012 pela Segunda Turma do Tribunal Regional da 4ª Região[1], o qual entendeu que o registro, por parte do autor da ação, de créditos presumidos de ICMS não se traduziria em ingresso de receitas tributáveis.
No seu recurso extraordinário, a União Federal, em consonância com o entendimento esposado na Solução de Divergência COSIT nº 13, de 28 de abril de 2011[2], sustenta a impossibilidade de se excluir créditos presumidos de ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS, em virtude de ausência de disposição expressa nesse sentido, bem como que o acórdão recorrido violaria o artigo 150, § 6º, da Constituição Federal[3], por supostamente implicar a concessão de isenção sem lei que a fundamente.
Em que pese o respeito dispensado ao entendimento fazendário, e com base nos fundamentos que demonstraremos nas seções seguintes, entendemos que créditos presumidos de ICMS sequer se subsomem ao conceito de receita, não podendo, portanto, se sujeitar à tributação por PIS/COFINS, consequentemente fazendo desnecessária a edição de norma expressa prevendo a “exclusão” dessas rubricas.
II. O ICMS E OS INCENTIVOS DE CRÉDITO PRESUMIDO
O ICMS é um imposto não cumulativo, de maneira que as aquisições de insumos tributados geram direito ao crédito do imposto, o qual deve ser contraposto ao valor do ICMS debitado nas notas fiscais de venda das mercadorias.
Assim, ao adquirir insumos ou mercadorias para revenda, as empresas lançam as aquisições no livro registro de entradas, registrando o valor do crédito do ICMS relativo a tais aquisições, quando permitido pela legislação.
Quando da saída das mercadorias vendidas, é efetuado o respectivo registro no livro registro de saídas, lançando-se o valor do débito de ICMS destacado nas notas fiscais de venda.
O "crédito tributário" é constituído pelo lançamento[4], consubstanciado no procedimento por meio do qual se calcula o montante do tributo devido.
"Crédito tributário" pode ser definido como o direito subjetivo de que dispõe o sujeito ativo para exigir o objeto prestacional[5].
Para efetuar o lançamento por homologação e calcular o valor devido a título de ICMS, ao término de cada período de apuração, os créditos e débitos mencionados acima são lançados no livro registro de apuração e do seu confronto nasce o valor do imposto devido pelas empresas que não fazem jus a incentivos fiscais.
Nos casos de benefícios fiscais, a apuração do ICMS devido não se encerra quando do mero confronto dos créditos relativos à aquisição de insumos com os débitos atinentes às vendas.
Os beneficiários desses incentivos devem, antes, lançar os créditos presumidos, para somente depois chegar ao valor do ICMS devido.
O exposto acima evidencia que o lançamento dos valores de incentivos de crédito presumido de ICMS atua em momento anterior à determinação do quantum devido pelo contribuinte.
Ou seja, colocando-se todos os lançamentos descritos acima numa linha do tempo, com um marco indicativo de quando nasce a obrigação relativa ao pagamento do ICMS, todos os lançamentos efetuados acima estão antes desse marco indicativo.
Nessa seara, é importante esclarecer que no âmbito do ICMS existem diversas formas de implementar benefícios fiscais.
Por vezes o legislador opta por conceder diretamente redução de alíquotas ou isenções, outras vezes é concedida redução da base de cálculo do imposto, outras, ainda, créditos presumidos.
Independentemente da forma de concessão desses incentivos, o traço jurídico comum a todos é que eles atuam sempre no sentido de impedir que, no seu montante, nasça o débito de ICMS em desfavor do beneficiário. Ou seja, esses benefícios atuam sempre em momento anterior ao cálculo do ICMS devido.
Diferente é o caso de incentivos consistentes em efetiva devolução do valor do tributo, em que a apuração do imposto devido não é alterada pelo benefício, vale dizer, o contribuinte é devedor do valor bruto do tributo, paga tal tributo, e posteriormente o recebe de volta.
A diferença jurídica relevante é que no primeiro caso o benefício atua em momento anterior à constituição do crédito tributário, funcionando como elemento impeditivo do nascimento deste crédito; já no segundo caso, o benefício atua em momento posterior ao nascimento do crédito tributário.
Com isso, evidencia-se que os valores dos créditos presumidos são computados em momento anterior ao nascimento do "crédito tributário" de ICMS, vale dizer, antes da quantificação da obrigação de pagar o ICMS.
III. A IMPOSSIBILIDADE DE OS CRÉDITOS PRESUMIDOS SEREM CARACTERIZADOS COMO "RECEITA"
Ao se tratar da base de cálculo do PIS e da COFINS, não se pode supor cegamente que determinado lançamento contábil, ainda quando feito a título de receita, seja tributável.
A tributação por PIS/COFINS só pode recair sobre materialidades que, por sua natureza - e independentemente da sua denominação ou >[6].
E, consoante a doutrina, o conceito de receita diz necessariamente respeito ao aumento no patrimônio do contribuinte[7].
Mesmo o conceito meramente contábil de receita aponta no mesmo sentido: o Pronunciamento Técnico do Comitê de Pronunciamentos Contábeis nº 30 - Receitas dispõe que "Receita é o ingresso bruto de benefícios econômicos durante o período observado no curso das atividades ordinárias da entidade que resultam no aumento do seu patrimônio líquido (...)" (grifos nossos).
Ou seja, acréscimos nos ativos e decréscimos nos passivos designados como receitas são relativos a eventos que possam alterar a equação final entre bens, direitos e obrigações.
E, no caso de créditos presumidos de ICMS, os respectivos valores registrados pelo contribuinte não representam aumento no seu patrimônio, inclusive pelo fato de que são registrados previamente à ocorrência da mutação patrimonial.
A efetiva mutação patrimonial só ocorrerá quando efetivamente apurado o montante do ICMS devido, quando será constituída a obrigação de pagar o ICMS, a qual alterará o patrimônio do contribuinte.
Nesse sentido inclusive já se manifestou a 1ª Câmara da 2ª Turma Ordinária da Terceira Seção de Julgamento do CARF: "(...) a exclusiva apuração contábil do crédito presumido, que pode não trazer qualquer vantagem patrimonial ou, se trouxer, representará exclusivamente uma redução do ICMS a pagar, não se traduz em um aumento patrimonial e, como tal, não poderia ser considerada uma receita"[8].
Importante salientar que a jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça é no sentido acima exposto, conforme se pode depreender do seguinte excerto da ementa do AgRg no AREsp 661146/SC, julgado recentemente, em junho de 2015: "A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que o crédito presumido referente ao ICMS não tem natureza de receita ou faturamento, razão pela qual não pode ser incluído na base de cálculo do PIS e da Cofins"[9].
Os incentivos fiscais de créditos presumidos de ICMS, assim como qualquer isenção tributária, como qualquer redução de alíquota ou de base de cálculo do imposto, consistem em mero fato impeditivo da constituição do crédito tributário.
Se esse fato impeditivo representasse receita passível de tributação, então toda a isenção e toda a redução de alíquota de IPI e de ICMS deveriam sofrer a incidência do PIS e da COFINS, o que não faz sentido.
Em suma, créditos presumidos de ICMS não se subsomem ao conceito de receita, razão pela qual não são passíveis de tributação por PIS/COFINS.
IV. A TRIBUTAÇÃO DE CRÉDITOS PRESUMIDOS, ALÉM DE CONTRADIZER O ENTENDIMENTO DA PRÓPRIA RECEITA FEDERAL EM SITUAÇÕES ANÁLOGAS, IMPLICA NA CONSAGRAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA ÀS AVESSAS
Conforme visto acima, os créditos presumidos de ICMS não são tributáveis por PIS/COFINS, refletindo meros ajustes contábeis, com natureza diversa de receita.
Interessante notar que em outras ocasiões a própria Receita Federal adotou entendimento análogo.
Deparado com a questão de definir quais valores deveriam ser considerados como base de cálculo para fins da CSLL e quais não deveriam, em julgado que versou sobre a restituição de tributos, o Conselheiro Relator José Antonio Minatel assim se pronunciou:
"(...) é fundamental que os procedimentos a serem adotados no trato dos valores do tributo recuperado possam neutralizar todos os efeitos tributários anteriormente provocados pela incidência (...) CSLL RECUPERADA: se o valor apurado referir-se a período em que a contribuição social sobre o lucro era dedutível da sua própria base de cálculo, e também do IRPJ (...) é imperioso que o valor recuperado seja agora adicionado à base de cálculo do IRPJ e da CSLL, para neutralizar a dedução anteriormente aproveitada. A contrariu sensu se o valor recuperado referir-se a período em que a contribuição social sobre o lucro não afetou a sua própria base de cálculo, tampouco do IRPJ, a neutralização que se espera é a recomposição do saldo da conta de lucros acumulados do grupo do patrimônio líquido, indevidamente reduzida pela anterior apropriação da CSLL, pelo que o valor do crédito recuperado melhor se amolda ao tratamento de "ajustes de exercício anteriores", sem necessidade de transitar pelo resultado do exercício no período da sua apuração, posto que não representa ingresso de nova receita"[10].
Adotando semelhante raciocínio, em dezembro de 2003 a Receita Federal consolidou entendimento que há muito já vinha sendo adotado pelo então Conselho de Contribuintes, editando o Ato Declaratório Interpretativo nº 25/2003, com a seguinte redação:
"Art. 1º Os valores restituídos a título de tributo pago indevidamente serão tributados pelo (...) IRPJ e pela (...) CSLL, se, em períodos anteriores, tiverem sido computados como despesas dedutíveis do lucro real e da base de cálculo da CSLL
Art. 2º. Não há incidência da (...) Cofins e da Contribuição para o PIS/Pasep sobre os valores recuperados a título de tributo pago indevidamente".
Conforme se pode depreender, o critério adotado pela Receita Federal para definir se os valores, ali de recuperação de tributos, e aqui de incentivo fiscal, deveriam compor a base de cálculo dos tributos ditos corporativos (CSLL, IRPJ, PIS e COFINS) foi o seguinte: eles só devem compor essas bases de cálculo se a despesa dos tributos recuperados/incentivados, em momento anterior, reduziu essas mesmas bases de cálculo.
Aplicando-se esse entendimento ao caso de créditos presumidos de ICMS, conclui-se que poderia até se discutir se comporiam as bases de cálculo do IRPJ e da CSLL, visto que, em função da técnica contábil, inicialmente seriam lançados como despesa os valores brutos de ICMS destacados nas notas fiscais de vendas. Assim, para apurar a despesa efetiva, computar-se-ia o valor do incentivo, reduzindo-se a despesa.
No entanto, tratando-se do PIS e da COFINS, ao contrário do que ocorre com o IRPJ e com a CSLL, o valor bruto do ICMS não é deduzido para fins de apuração da base de cálculo, razão pela qual sequer na ótica fiscal apontada acima deveria o incentivo se sujeitar à tributação pelas contribuições sociais ora em exame.
Aliás, considerando-se que o PIS e a COFINS incidem sobre os valores integrais de ICMS destacados nas notas de venda, sem qualquer dedução de valores correspondentes a incentivos de créditos presumidos, tributar esses incentivos seria tributar uma mesma receita, uma mesma riqueza, duas vezes.
A prevalecer a imposição do PIS e da COFINS, consagrar-se-ia assim o princípio da capacidade contributiva às avessas.
De fato, em se tributando os créditos presumidos de ICMS registrados pelos contribuintes, vislumbrar-se-ia absurda dupla incidência do PIS e da COFINS sobre valores que não representam capacidade contributiva nova para os contribuintes além daquela que já foi tributada quando da incidência dessas contribuições sobre o ICMS.
Não nos parece uma interpretação razoável supor que os contribuintes tenham a obrigação de recolher o PIS e a COFINS duas vezes sobre os mesmos valores, sendo esse outro motivo pelo qual a tributação dos créditos presumidos de ICMS não se sustenta.
V. CONCLUSÃO
Como se pode depreender do acima exposto, matéria objeto de controvérsia entre as autoridades fiscais e os contribuintes deverá ser apreciada pelo STF sob a sistemática do artigo 543-B do Código de Processo Civil.
Entendemos que a sujeição dos créditos presumidos de ICMS a incidência de PIS e COFINS não se sustenta, sob qualquer ângulo que se analise a questão, em especial tendo em vista que não se subsomem ao conceito de "receita" tributável por essas contribuições.
VI. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. Malheiros Editores Ltda. 2011
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, 2002
OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Conceito de Receita como Hipótese de Incidência das Contribuições para a Seguridade Social (Para Efeitos da COFINS e da Contribuição ao PIS), Repertório IOB de Jurisprudência - 1a. quinzena de janeiro de 2001 - nº 1/2001 - Caderno 1
TOMÉ, Fabiana Del Padre. Contribuições para a seguridade social: à luz da Constituição Federal. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2013
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[1] Apelação / Reexame Necessário nº. 5014019-74.2010.404.7000/PR.
[2] Transcrevemos os seguintes excertos dessa Solução de Divergência: "Por absoluta falta de amparo legal para a sua exclusão, o valor apurado do crédito presumido do ICMS concedido pelos Estados e pelo Distrito Federal constitui receita tributável que deve integrar a base de cálculo da Contribuição para o PIS/Pasep"; e "Por absoluta falta de amparo legal para a sua exclusão, o valor apurado do crédito presumido do ICMS concedido pelos Estados e pelo Distrito Federal constitui receita tributável que deve integrar a base de cálculo da Cofins".
[3] "Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...)
§ 6º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g".
[4] V. art. 142 do Código Tributário Nacional.
[5]CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, 2002, pág. 360.
[6] Lei no 10.637/2002: "Art. 1º A Contribuição para o PIS/Pasep, com a incidência não cumulativa, incide sobre o total das receitas auferidas no mês pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou >".
Lei nº 10.833/2003: "Art. 1º A Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social - Cofins, com a incidência não cumulativa, incide sobre o total das receitas auferidas no mês pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou >".
[7] "(...) a receita é considerada, sem qualquer mínima oposição seja de quem for, como um fator de aumento do patrimônio. Este dado, efetivamente, está presente em todas as manifestações doutrinárias a propósito do tema, assim como pode ser extraído dos princípios contábeis e das leis que aludem à receita, se não expressamente, no mínimo implicitamente" [OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Conceito de Receita como Hipótese de Incidência das Contribuições para a Seguridade Social (Para Efeitos da COFINS e da Contribuição ao PIS), Repertório IOB de Jurisprudência - 1a. quinzena de janeiro de 2001 - nº 1/2001 - Caderno 1 - pág. 43].
[8] Excerto do voto do Cons. Marcelo Guerra de Castro (acórdão nº. 3102-001.989).
[9]Rel. Ministro Herman Benjamin. Segunda Turma. D.J. 18/06/2015.
[10] Acórdão nº. 108-05.636, do Cons. de Contribuintes.
(Revista Eletrônica de Direito Tributário, v. 5, n. 44, 2015)
(Artigo na íntegra)