A Câmara dos Deputados aprovou na última terça-feira (2) o Projeto de Lei 534/21 que autoriza estados, municípios e setor privado a comprar vacinas da Covid-19 com registro ou autorização temporária de uso no Brasil. A medida trouxe algumas dúvidas para o setor jurídico e é considerada até desnecessária por alguns profissionais, que criticam a falta de um programa que centralize a vacinação no país. A matéria ainda precisa de sanção do presidente Bolsonaro, que tem até o fim do mês para analisar o projeto.


A proposta trata do uso dos imunizantes pelo setor privado no país. Por enquanto, durante a vacinação dos grupos prioritários estipulados pelo Ministério da Saúde, as doses terão que ser todas doadas ao Sistema Único de Saúde (SUS). Depois dessa etapa, o setor privado poderá ficar com metade das vacinas que comprar, com a condição de que elas sejam aplicadas de forma gratuita. Outros 50% terão que ser enviados ao SUS.


Hoje, no Plano Nacional de Imunização do Ministério da Saúde, a população prioritária é dividida em 27 categorias. Estão listados, por exemplo, trabalhadores da saúde, maiores de 60 anos, maiores de 18 anos com comorbidades e indígenas maiores de 18 anos. São 77 milhões de pessoas que se enquadram no universo de prioridades, entre os mais de 210 milhões de brasileiros.


É com lembrar que o projeto aprovado discute somente a distribuição dos imunizantes aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa): as vacinas CoronaVac e Oxford-AstraZeneca. A Pfizer já recebeu autorização da Anvisa, mas as negociações de compra ainda estão em andamento.


“Neste momento, o que a lei fez foi: em primeiro lugar, impedir que o setor privado compre vacinas que estão aprovadas pela Anvisa – a única aprovada no processo regular é a da Pfizer. Se a Pfizer quisesse vender para clínicas, antes dessa lei, poderia. Agora, já não pode mais. Só pode vender para clínicas se elas doarem 100% para o SUS. A nova lei bloqueou a compra privada das vacinas que forem aprovadas pela Anvisa”, avalia Raphael Sodré Cittadino, presidente do Instituto de Estudos Legislativos e Políticas Públicas e sócio-fundador do Cittadino, Campos & Antonioli Advogados Associados.


“Em segundo lugar, a lei permite que empresas privadas que não sejam clínicas de vacinação possam adquirir as vacinas após a imunização dos grupos prioritários, porque, pelas regras sanitárias no Brasil, só podem adquirir vacinas as clínicas de vacinação – empresas com essa finalidade econômica”, afirma o advogado.


Na prática, o projeto permite que as empresas comprem as vacinas e apliquem nos seus funcionários, desde que já estejam vacinados os grupos prioritários, mas metade das vacinas compradas têm que ser doadas.


“É uma lei que não vai ter muito efeito prático imediato porque, neste momento, as clínicas não estavam comprando a vacina da Pfizer porque a própria empresa manifestou que não venderia para o setor privado, pois daria prioridade para o setor público. Ou seja, não vai ocorrer agora a compra e a distribuição para as empresas porque os grupos prioritários ainda estão longe de serem totalmente vacinados”, analisa Cittadino.


O presidente da Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética (Anadem), Raul Canal, explica que, caso a aquisição por entes privados não entre em conflito com os interesses do setor público e atenda a todas as normas, não há motivo para impedimento. “Considerando que não haja prejuízos à compra direta por parte do governo, que as regras já estabelecidas sejam devidamente cumpridas e que, em contrapartida, parte dessas doses seja repassada ao setor público, há benefício à sociedade. Afinal, aqueles que não dependem do SUS deixam a fila e pagam por sua dose”, afirma o especialista.


Para Wilson Sales Belchior, sócio do RMS Advogados e conselheiro federal da OAB, o PL 534/2021 poderá ampliar os potenciais compradores e fornecedores e é essencial para que se retome algum nível de normalidade no país. “Chama-se atenção, no entanto, para alguns pontos, como os critérios para aquisição excepcional de vacinas por estados e municípios, considerando que tempestividade e suficiência são conceitos amplos; e a necessidade de regulamentação da aquisição de imunizantes por pessoas jurídicas de direito privado quanto ao fornecimento de informações e aos requisitos que deverão ser atendidos depois de vacinados os grupos prioritários", afirma.


A questão dos efeitos inesperados da vacina e a responsabilidade civil

O projeto aprovado esta semana é de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e foi elaborado – segundo o senador - após consulta ao Ministério da Saúde. Ele autoriza a União, os estados e os municípios a se responsabilizarem por eventuais efeitos colaterais provocados por quem tomar a vacina.


"A proposição tem o objetivo de ampliar o acesso aos imunizantes, com a participação de todos os entes federados e com a contribuição solidária das pessoas jurídicas que queiram participar da campanha de vacinação", disse o relator do projeto, o deputado Igor Timo, do Podemos de Minas Gerais.


E essa é uma das principais polêmicas - entre as empresas que produzem a vacina e o governo federal. Afinal, de quem é a responsabilidade civil por possíveis efeitos colaterais da vacina? Essa é uma exigência feita por boa parte dos laboratórios, como Pfizer/BioNTech e Janssen, que chegaram a iniciar negociações para a venda de doses.

Ana Cândida Sammarco, head do setor regulatório de life sciences e saúde do escritório Mattos filho, explica que, do ponto de vista jurídico, os contratos celebrados com a indústria farmacêutica comumente têm esta cláusula de responsabilidade. “Estamos falando de produtos inovadores e não é incomum ter este tipo de responsabilidade, seja com qualquer tipo de ente governamental”.


Em conversa com LexLatin, Lucas Sant´Anna, sócio da área de direito público do Machado Meyer, avaliou a discussão da possibilidade do governo abrir mão de garantias e outras medidas exigidas pela indústria farmacêutica.


“Isso já existe no ordenamento jurídico brasileiro, que permite a qualquer governo adquirir vacinas em condições menos usuais que as normais, lançando mão de garantias, aceitando obrigações que usualmente não são aceitas justamente porque as circunstâncias permitem e exigem isso. O ordenamento jurídico não impediria uma negociação de boa fé com a indústria farmacêutica, que tem suas razões para fazer desta forma”, avalia o advogado.


A mesma opinião tem Ana Cândida Sammarco. “Do ponto de vista jurídico, eu vejo essa discussão como desnecessária, considerando o estado de calamidade pública. É um formalismo exacerbado tratar num projeto de lei estas questões. O nosso arcabouço jurídico atual já prevê uma série de situações excepcionais que poderiam estar sendo adotadas considerando a emergência de saúde pública”.


“A Pfizer certamente está tentando se proteger e receber o pagamento adequadamente de estados que não têm histórico de bons pagadores. Infelizmente esse é o caso do Brasil. O governo é o maior litigante do país. Fato é que aceitar condições especiais agora não seria descumprimento do ordenamento jurídico. No meu ponto de vista, o artigo é desnecessário do ponto de vista técnico, é uma redundância. Talvez o Legislativo não tenha pensado com a cabeça técnica, mas, por outro lado, o dispositivo acaba com a desculpa do governo federal para não adquirir as vacinas”, diz Sant´Anna.

(Portal LexLatin - 03.03.2021)