O setor de energia elétrica tem se destacado historicamente como um dos segmentos de infraestrutura no Brasil com maior atratividade ao investimento privado. Desde a primeira onda de privatizações, no fim da década de 90, o setor de energia elétrica apresentou um crescimento acelerado. Segundo dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a capacidade instalada de geração de energia elétrica no Brasil passou de 93.158 MW em 2006, para 170.118 MW em 2019, um crescimento de 83% em apenas 14 anos. Hoje, o setor é composto tanto por empresas estatais quanto pelas de capital privado, com grandes players mundiais. Tal crescimento deve-se à estabilidade jurídico-regulatória do setor, apesar de alguns períodos de "altos e baixos".



O setor de energia encontra-se em processo de franca modernização, guiada pela necessidade de adaptação constante às novas tecnologias e de aprimoramento do atual modelo de mercado. Espera-se que as iniciativas do governo federal, nos próximos dois anos, estejam concentradas na implementação do Plano de Modernização do Setor Elétrico. O Plano contempla 92 ações e 15 frentes, com base nos princípios da governança pública, estabilidade jurídico-regulatória e previsibilidade. Almeja-se alcançar a garantia de suprimento, universalização do acesso ao sistema elétrico, competitividade e inovação, além da inserção de novas tecnologias. Dentre as frentes, estão a expansão do mercado livre, a separação de lastro e energia e a racionalização de subsídios. Desafios que, por si só, já são tarefa suficiente para preencher a agenda governamental por um bom tempo.



O mercado de contratação livre vem sendo um relevante indutor de investimentos na expansão da matriz elétrica nos últimos anos. Hoje, os consumidores com carga igual ou superior a 1.500 kW, atendidos em qualquer tensão, podem optar pela compra de energia elétrica de qualquer concessionário, permissionário ou autorizado para comercialização do Sistema Interligado Nacional. Mas na portaria nº 465, de 12 de dezembro de 2019, o Ministério de Minas Energia estabeleceu redução progressiva de limites de carga para os consumidores livres de energia. E, em 2023, o limite mínimo de carga para que o consumidor livre possa entrar no mercado livre de energia será de 500 kW. Tal expansão exigirá novas medidas de segurança de mercado. A Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) já estuda o tema e propõe à Aneel um enrijecimento das regras para entrada e permanência de comercializadores de energia elétrica no mercado.



Os próximos dois anos também serão marcados pelo avanço das discussões sobre a separação de lastro e energia. O tema foi incluído no plano de modernização do setor elétrico devido ao avanço das fontes intermitentes de geração de energia na matriz elétrica brasileira, e também à necessidade de racionalizar os incentivos e custos para expansão da capacidade de geração no setor elétrico. Segundo o Balanço Energético de 2020, a geração de energia elétrica por empreendimentos eólicos cresceu 15,5% de 2018 para 2019, ao passo que a geração por empreendimentos solares fotovoltaicos cresceu 92,2% no mesmo período. Tais fontes, entretanto, são intermitentes, ou seja, o recurso energético utilizado por elas não pode ser armazenado em sua forma original, ao contrário do que ocorre com as usinas hidrelétricas, que conseguem armazenar recurso energético, a água, em reservatórios.



O setor elétrico também está em processo de racionalização de subsídios. A MP 998 instituiu o fim do desconto de 50% nas tarifas de uso do sistema de transmissão e de distribuição aplicável sobre a energia produzida por fontes alternativas. Se o texto aprovado pelo Senado não sofrer nenhum veto presidencial, o desconto só será aplicável a empreendimentos que solicitem outorga até 12 meses após a publicação da nova lei e, cumulativamente, entrem em operação comercial em um prazo de até 48 meses após a publicação da outorga. Ou seja, as fontes alternativas deixarão de contar com um importante incentivo que foi responsável por promover o grande desenvolvimento do mercado de energias renováveis no último ano. Sendo assim, será que o Governo Federal conseguirá implementar atributos ambientais em projetos renováveis nos próximos anos, que permita a captura e precificação dos benefícios à matriz elétrica brasileira?



O aprimoramento da regulamentação aplicável ao segmento da geração distribuída também está na ordem do dia. A Aneel pretende modificar o sistema de compensação para micro e mini geração distribuída, de forma que a diferença entre a energia consumida e a energia injetada na rede seja compensada somente sobre a tarifa de energia. Está em jogo o equilíbrio entre promover os corretos incentivos para a expansão do mercado de geração distribuída e a racionalização desses mesmos incentivos.



O fato é que o setor de energia elétrica do Brasil vivencia e continuará a vivenciar, nos próximos dois anos, novos modelos de negócio como, por exemplo, a celebração de contratos de compra e venda de energia em moeda estrangeira. Além disso, a inauguração recente do mercado de derivativos de energia pelo Balcão Brasileiro de Comercialização de Energia (BBCE), bem como a criação do Selo de Confiança da B3 para o mercado de energia elétrica ampliam as perspectivas do setor em direção ao mercado financeiro.



As oportunidades de aprimoramento do setor são inúmeras. O Plano Decenal de Expansão de Energia 2029, da EPE, indica que o investimento nos próximos 10 anos no setor de energia é de R$ 2,3 trilhões, sendo R$ 303 bilhões em geração centralizada, R$ 50 bilhões em geração distribuída e R$ 104 bilhões em transmissão de energia elétrica. O programa de dados de distribuição de energia elétrica da Aneel indica um investimento estimado de R$ 48 bilhões. Os princípios do Plano de Modernização do Setor Elétrico deverão guiar os trabalhos de aprimoramento do arcabouço jurídico-regulatório do setor e o desenvolvimento dos novos negócios nos próximos anos, de forma que o setor de energia elétrica brasileiro continue a ser referência de estabilidade jurídico-regulatória, crescimento e atração de investimentos estrangeiros do País.




*Ana Karina Souza é sócia de energia do Machado Meyer Advogados e escreve periodicamente para esta 'Coluna Legal', do Broadcast Energia. Este texto foi escrito em parceria com Heloisa Zerbinatti Sato, advogada da área infraestrutura do Machado Meyer Advogados.

(BroadCast - 01.03.2021)