Por Fernanda Sá Freire, Virgínia Pillekamp e Guilherme Eleutério Martínez
Com toda a atenção voltada para a reforma tributária, surge, discretamente, um peculiar movimento quanto à contestação de benefícios fiscais concedidos à margem da regra constitucional e objeto de convalidação pela Lei Complementar 160/2017 e pelo Convênio 190/2017. A Procuradoria Geral da República vem questionando, por meio de Ação de Inconstitucionalidade, benefícios fiscais concedidos à margem dos ditames da Constituição Federal, bem assim argumentando acerca da inconstitucionalidade da Lei Complementar 160/2017 e Convênio 190/2017.
Cabe relembrar que, visando encerrar os questionamentos quanto à famigerada Guerra Fiscal vivenciadas entre os Estado em razão do ICMS, foram publicadas tais normas com o intuito da convalidação dos benefícios fiscais concedidos, bem assim autorização para prorrogação de tais incentivos.O propósito era claro. Acabar com a Guerra Fiscal e instaurar um ambiente de segurança jurídica propício ao desenvolvimento da economia.Para alcançar tal resultado, caberia ao Estado o adimplemento de uma série de condicionantes e obrigações (registro, depósito dos benefícios, relação dos incentivos e atos normativos e edição de Lei anistiando a remissão do imposto), de modo a tornar possível os efeitos de convalidação e prorrogação.Quando da edição de tais atos, o estado do Amazonas apresentou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.902/AM, de modo a contestar a convalidação de benefícios fiscais de ICMS concedidos pelas unidades federadas, sem prévia deliberação do CONFAZ, ao argumento de que afrontariam a autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal que reconhecem a inconstitucionalidade desse tipo de medida.Remetidos os autos para Procuradoria Geral da República, foi proferida Manifestação considerando inconstitucional a Lei Complementar 160/2017, sob os seguintes argumentos: (i) a impossibilidade de convalidação de benefícios fiscais inconstitucionais, uma vez que não cabe a fenômeno da constitucionalidade superveniente; (ii) exigência de unanimidade em razão do disposto no artigo 155, §2º, XII, 'g', da CF; e (iii) o art. 4.' da LC 160/2017, ao afastar a incidência das restrições decorrentes da aplicação do art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal, afronta o art. 113 do ADCT, que estabeleceu que toda proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deve será acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.Quanto à impossibilidade de convalidação e prorrogação dos efeitos dos benefícios inconstitucionais, cabe argumentar a prorrogação dos efeitos ou convalidação dos efeitos é realizada, de modo análogo, pelo próprio Supremo Tribunal Federal (ao realizar a modulação de efeitos de decisões). Assim, se cabe ao judiciário realizar tal ato, poderia se argumentar que é possível ao legislativo estabelecer os mesmos efeitos.Quanto à exigência de unanimidade, a Constituição ressalta que lei complementar definirá os parâmetros para aprovação dos convênios. Assim, a LC 160/2017 ao definir os parâmetros cumpre com a regra constitucional.A importância da discussão surge quando debruçamos no artigo 4 da Lei Complementar 160/2017 e sua análise em face do artigo 113 da ADCT.A Lei Complementar nº 160/2017 busca afastar as restrições impostas pelo art. 14 da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), que exigem que a concessão ou a ampliação de benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita seja acompanhada da estimativa do impacto orçamentário-financeiro.Ocorre que a exigência da estimativa do impacto financeiro e orçamentário foi elevada ao status de norma constitucional com o advento da Emenda Constitucional 95/2016 que instituiu o novo regime fiscal.Assim, ainda que a Lei Complementar determine que não cabe aplicação das regras fiscais impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal esbarra na regra constitucional, de modo que caberia à Lei Complementar apresentar uma estimativa do impacto orçamentário e fiscal, a qual não fora apresentado.Considerando a ausência de tal estudo, poder-se-ia dizer que toda a convalidação dos benefícios fiscais fora realizada à margem dos ditames da Constituição Federal. Em outras palavras, ressurge o estado de completa insegurança jurídica.Entretanto, uma vez que fora os estados da Federação que realizaram a convalidação e prorrogação dos benefícios, cabe analisar se as regras da ADCT 113 se aplicam aos Estados.O texto constitucional é expresso ao estender aos estados algumas regras dirigidas inicialmente à União (caso de regras parlamentares).A jurisprudência já ressaltou que as regras básicas do processo legislativo, bem assim regras sobre administração pública devem ser observadas pelas constituições estaduais. No presente caso, não há uma extensão automática, de modo que cabe uma análise do princípio da simetria no presente caso.À margem dessa discussão teórica, a PGR vem se manifestando acerca da inconstitucionalidade de benefícios fiscais. Nesse sentido é a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.479/PA, a qual foi apresentada no início de julho.Em tal oportunidade, a PGR se manifesta acerca de incentivo fiscal de ICMS às indústrias paraenses de produtos industrializados derivados de farinha de trigo (massas, biscoitos, bolachas, pães). Cabe pontuar que tal benefício foi, aparentemente, objeto de remissão e convalidação pelo Estado do Pará.Nesse mesmo sentido é a ADI 6319, na qual se discute benefício fiscal concedido pelo estado do Mato Grosso e ressalta a inconstitucionalidade da Lei Complementar 160/2017 e do Convênio 190/2017.O resultado é a grande insegurança jurídica ocasionada e sofrida pelos contribuintes. Não bastasse os benefícios fiscais (objeto de convalidação) serem concedidos pelos estados, a própria convalidação/prorrogação performada pela Lei Complementar 160/2017 e Convênio 190/2017 é objeto de questionamento.As consequências são desastrosas, com a edição da Lei Complementar nº 160/2017 houve uma tentativa de apaziguar a Guerra Fiscal e trazer a segurança jurídica.Consequência disso, os estados adaptaram suas legislações e contribuintes consideraram tais benefícios em suas estruturas e negócios, de modo que eventual questionamento nos jogará, mais uma vez, num estado de insegurança jurídica completamente desastroso.A análise deve ser realizada com cuidado e com a ponderação necessária, considerando o efeito em cascata que pode ocasionar em toda a economia do País, ainda mais se considerarmos a atual recessão econômica vivenciada.
FERNANDA SÁ FREIRE - Sócia do Machado Meyer Advogados. VIRGÍNIA PILLEKAMP - Sócia do Machado Meyer Advogados. GUILHERME ELEUTÉRIO MARTÍNEZ - Advogado do Machado Meyer Advogados, graduado pela PUC-SP, pós-graduado pela FGV, Membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/SP.(JOTA - 28.10.2020)