Crise pode reduzir a venda de craques da América Latina. Times enfrentarão redução de receita, mas melhora do espetáculo pode valorizar suas marcas
 
Lucas Sasha foi descoberto em uma partida de futebol infantil aos 13 anos. O olheiro gostou de seu toque de bola, viu que levava jeito, e o convidou a iniciar os treinos no "Terrão", do Parque São Jorge, sede do Corinthians. Há três anos, Lucas fez sua primeira partida como profissional, e, nesta temporada, aos 19, conquistou um título que o deixou mais próximo de realizar seu sonho: a Copa São Paulo de Juniores. Mas "ainda não estou satisfeito", diz. Como a da imensa maioria de seus pares, sua meta, é "ser um dos melhores", jogar por grandes clubes mundiais, como o Milan ou o Manchester United.
 
Sasha espera que isso possa acontecer em dois anos mais. O problema que pode minar seus planos, porém, é que no campo adversário surgiu um forte rival: a crise econômica mundial, que já impacta o placar de exportações de jogadores. Apertados pela retranca no crédito adotada pela maioria dos patrocinadores e investidores, os grandes clubes estrangeiros, em especial os europeus, tendem a comprar menos atletas da região este ano. E as cifras recordes registradas em anos anteriores dificilmente se repetirão em 2009, de acordo com relatos de executivos, consultores e dirigentes ligados ao esporte.
 
A boa notícia é que, se no curto prazo a redução terá impacto negativo no desempenho dos clubes latinoamericanos dentro das quatro linhas do balanço, suas marcas podem ser fortalecidas pela beleza do espetáculo oferecido pelos jogadores que ficarem.
 
A prova dos nove poderá ser tirada nos meses que estão por vir. Até o dia 31 de agosto permanece aberta a principal janela de transações com os clubes europeus, período no qual os times podem negociar jogadores com outros clubes e países. Os negócios tradicionalmente se aquecem na medida em que o prazo final se aproxima.
 
"Esta será a primeira janela forte pós-crise. A expectativa é de que o grande craque - dois ou três jogadores -, será negociado de qualquer forma. Agora, o varejo, o restante, ainda não sabemos se será afetado em preço ou em volume", diz Felipe Lobo Faro, diretor de negócios de Futebol da Traffic, uma das maiores companhias do setor no Brasil, dona de um time de segunda divisão e de um centro de formação onde mantém cerca de 100 atletas. "Hoje, a expectativa do mercado não é otimista", afirma João Paulo Lopes, diretor de futebol do São Paulo Futebol Clube, clube campeão brasileiro em 2007 e 2008 e um dos maiores celeiros de craques do mundo - nos últimos 15 anos, exportou cerca de US$ 125 milhões em jogadores.
 
Ao lado da venda dos direitos de transmissão, a venda de jogadores é hoje a principal fonte de renda da grande maioria dos clubes brasileiros, diz Amir Somoggi, especialista em marketing e gestão de clubes de futebol e auditor associado da Casual Auditores, que analisa os balanços de mais de 20 dos principais times de futebol do país. Em 2003, quando foram vendidos ao exterior 858 atletas, as transferências responderam em média por 26% da receita anual dos grandes clubes brasileiros, enquanto os direitos televisivos renderam outros 34%. Em 2007, esses percentuais eram, respectivamente, de 34% (1085 jogadores vendidos) e 22%. A sorte dos clubes, diz, é que a crise coincide com a renovação do contrato de transmissão dos jogos, que subiu para cerca de R$ 420 milhões, ante os cerca de R$ 300 milhões do anterior, que vigorou até o final da temporada passada. "São R$ 120 milhões que ajudarão a equilibrar as finanças", diz.
 
Que ajudarão, mas não cobrirão por completo o rombo. Segundo números do Banco Central, que registra as transações, o comércio de craques com o mundo rendeu a empresários, jogadores, clubes e investidores locais pelo menos US$ 233,2 milhões em 2008, US$ 11 milhões a mais que no ano anterior e quase US$ 100 milhões a mais que em 2006. "Pelo menos" porque no mercado se avalia que nem todos os negócios realizados são feitos por vias formais. Em número de jogadores, de acordo com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), foi outro ano de recorde, com a venda de 1176 jogadores ao exterior, 91 a mais que em 2007.
 
Na Argentina, e em outros países da região com tradição futebolística, os números absolutos não são tão eloquentes. Ainda assim, proporcionalmente, são relevantes. Segundo o agente FIFA Mariano Vera Mieres, não há cifras oficiais confiáveis de vendas de jogadores. Mas, sua avaliação é a de que sejam enviados ao exterior anualmente algo entre 50 e 100 atletas. Por sua vez, o Uruguai, país que tem proporcionalmente à população o maior número de craques jogando fora - 19 dos 23 escalados para a seleção -, vende por ano entre 6 e 15 jogadores ao exterior, afirma Gonzalo Luis Madrid, agente FIFA local.
 
Este ano, porém, nenhum negócio realmente grande foi anunciado. "A crise pegou nossos principais mercados consumidores em cheio", diz Daniel Pacheco Affini, agente FIFA da Wm Marketing Esportivo. "Jogadores como Hernanes (do São Paulo, eleito melhor jogador do Campeonato Brasileiro em 2008), em outras épocas, já teriam saído. Mas acredito que este ano nem vão sair. A Europa vai esperar".
 
Até agora, as transações mais substanciais no Brasil foram as de Alex, que deixou o Internacional a caminho do Spartak, da Rússia, e a de Guilherme, do Cruzeiro, que foi para o Dynamo de Kiev, também russo. Ambas por 5 milhões de euros. Em segundo, na lista compilada por América Economia, aparece Edinho, do Internacional, vendido ao Lecce, da Itália, por 2,3 milhões de euros. Como comparação, nenhuma das maiores transações realizadas em 2008 ficou abaixo dos 5 milhões de euros. E a maior, de Alex Silva, do São Paulo, para o Hamburgo, na Alemanha, alcançou 13 milhões de euros. "De agosto (de 2008) pra cá, que grande operação que teve? Uma ou outra, só. Os preços caíram cerca de 50%. Quem valia 10 milhões, dificilmente será vendido por 5 milhões", diz Reinaldo Pitta, agente FIFA brasileiro da Gortin Promoções.
 
Efeitos colaterais
 
Apesar de o principal volume de negociações acontecer tradicionalmente no meio do ano, como exemplifica o empresário, a queda nos preços é um dos efeitos colaterais da menor demanda. "Não acredito em redução das vendas, mas sim em uma redução dos valores médios pagos por jogador", diz Luiz Henrique Ferreira Pompeo, agente FIFA brasileiro, para quem a queda no valor médio das transações já chega a 20%. A Espanha, por exemplo, foi impactada, segundo o agente FIFA chileno Mauricio Valenzuela Del Rio, e "hoje, não se paga o mesmo que antes, salvo em times como Barcelona, Real Madrid e alguns de Sevilha".
 
Para outros agentes, a situação só não é pior porque, apesar da maioria dos grandes times europeus ter colocado o pé no freio, há clubes menores em países como Ucrânia, Rússia, Alemanha e Inglaterra - neste em menor número -, com patrocinadores e investidores que não foram dragados pela crise. "Haverá queda na venda de jogadores, mas novos mercados, como a península arábica e a Ásia, também estão sendo incorporados", diz Guillermo Luis Tofoni, agente FIFA da argentina World Eleven. O problema, por ora, é que "assim como os japoneses, eles trabalham com preços menores, até 3 milhões de dólares", diz Lopes, dirigente do São Paulo.
 
Em função das dificuldades econômicas, muitos clubes estrangeiros estariam sendo ainda mais radicais e concentrando o foco de suas buscas em jogadores com contratos vencidos, para não serem obrigados a pagar a multa indenizatória aos clubes de origem, ou optando pela aquisição de direitos econômicos em parceria com outros times. "O perfil (de jogadores) que tem sido mais procurado atualmente é o bom, bonito, barato e comunitário", diz o agente FIFA brasileiro Álvaro Reis Serdeira.
 
Retornados
 
Mas, há também o efeito contrário, a volta de craques aos seus países de origem. E três dos exemplos mais significativos são os de Ronaldo Fenômeno, Adriano e Fred. "São três jogadores que estiveram na última Copa. Isso não é muito normal", diz Pitta, da Gortin Promoções. "O Fred, por exemplo, conseguiu retornar com salário na casa dos R$ 300 mil por mês, com contrato de cinco anos. É algo muito próximo do que ele ganharia lá fora", afirma. Se houvesse dinheiro fácil disponível, porém, o agente FIFA acredita que os clubes europeus não abririam mão desses jogadores. "Queira ou não, o Inter de Milão vai economizar cerca de 5 milhões de euros com a saída de Adriano". ?E não são só grandes craques em fase adiantada de carreira estão voltando. Segundo Luiz Gustavo Vieira de Castro, diretor de registro e transferências da CBF, de 15 de janeiro a 8 de abril - dados mais recentes disponíveis -, pela primeira vez em dez anos, o número de jogadores enviados ao exterior (383) foi menor que o de retornados (395). "Entre ficar desempregado aqui e lá fora, é melhor ficar desempregado aqui. Principalmente se você joga em divisões inferiores, as mais afetadas pela crise", diz.
 
Oportunidade
 
Porém, se por um lado a queda no volume e nos valores de venda de jogadores tende a aprofundar ainda mais os problemas financeiros dos clubes latinoamericanos - em especial aqueles já combalidos por sucessivas más administrações -, por outro abre uma rara oportunidade para que reformulem suas estruturas de arrecadação. "No médio prazo, a crise pode ser benéfica para o futebol brasileiro. Com um volume menor de venda de jogadores, o produto futebol tende a sair valorizado", avalia Ivandro Sanchez, advogado especialista em contratos de futebol e sócio do escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice. "Deixa-se de vender a matéria-prima, para vender o espetáculo".
 
Mais craques em campo valorizariam a camisa dos times, que poderiam buscar melhores ganhos na comercialização de direitos televisivos, inclusive em outros países. "É um mercado no qual o Brasil apenas engatinha", afirma o advogado, citando ainda possíveis ganhos em canais como internet e e-commerce. Somoggi, da Casual Auditores, concorda. Segundo ele, a bilheteria média dos clubes não representa hoje mais de 8% dos ganhos anuais, quando deveria representar cerca de 25%, e a exploração da marca, outros 30%. "O grande problema é que eles ainda não entenderam que a bilheteria, o estádio e a marca têm que ser a principal fonte de renda", diz o especialista.
 
Somoggi afirma ainda acreditar que esta seria ainda uma excelente oportunidade para que os times começassem a investir no desenvolvimento de jovens promessas, ao invés de repassá-las ainda em formação a clubes estrangeiros. "Porque a estratégia não gera apenas maiores rendimentos com a venda de um jogador já formado, lá na frente, mas também proporciona maior visibilidade para o time, até a venda", afirma.
 
O mais provável, porém, é que cresça a parceria entre empresários investidores, donos dos direitos econômicos de jogadores, e os grandes clubes, vitrines naturais de craques com potencial de venda lá fora. "Com os investidores atuando cada vez mais fortemente no mercado, os times não precisam desembolsar grandes valores em aquisições. E podem pagar melhores salários para segurar os jogadores. De outra forma, não teriam condições de fazê-lo", avalia Faro, da Traffic, que mantém sob contrato de empréstimo para clubes das série A e B do Campeonato Brasileiro cerca de 70 jogadores - em caso de venda, os clubes vitrine costumam ficar com parte dos ganhos.
 
O certo é que, como diz Sanchez, do Machado Meyer, o futebol nunca fugirá do chavão: uma caixinha de surpresas. E "investidores (estrangeiros) que perderam dinheiro em aplicações mais seguras, recentemente, não estarão dispostos a colocar dinheiro em algo ainda mais arriscado, como é o futebol". Se assim for, até que os europeus e outros estrangeiros retornem, pelo menos será possível voltar a gritar "Olé!". E, a Lucas Sacha, restará dar ainda mais duro nos gramados brasileiros para mostrar que é um investimento seguro.
 
 
(Notícia na íntegra)