O julgamento sobre a possibilidade de os Estados cobrarem ITCMD sobre doações e heranças de bens no exterior, que se inicia hoje no Supremo Tribunal Federal, vai atingir as famílias mais afortunadas do país. Pelo menos cinco entre as mais ricas têm ações ajuizadas na Justiça para não pagar o imposto e dependem da decisão dos ministros para que os seus casos tenham um desfecho.
A família Safra é uma delas. Existe mais de uma dúzia de ações ajuizadas pelos herdeiros do banqueiro Joseph Safra na Justiça de São Paulo. São mandados de segurança preventivos, para evitar que o Estado cobre a alíquota de 4% sobre as doações. Não há nenhum depósito em juízo. Como o patriarca vive na Suíça há cerca de uma década e tem um conglomerado financeiro com operações na Europa, Ásia e América, as doações para os filhos residentes no Brasil, principalmente de participações nas empresas, têm sido recorrentes, segundo uma fonte próxima ao banco. A maioria dessas ações foi ajuizada, em conjunto, pelos quatro filhos do banqueiro. Cinco delas foram julgadas neste ano, segundo indicação do site do Tribunal de Justiça de São Paulo — duas não correm em segredo judicial. Não há em nenhum dos processos qualquer questionamento acerca de simulações, com remessas indevidas e repatriação na sequência para evitar a tributação, acrescenta esse interlocutor. Os valores doados pelo patriarca, em dinheiro ou ações, são diferentes em cada processo, o que, segundo Advogados, sugere já haver uma governança familiar para a distribuição dos bens. Num deles, além de dólares e euros, há transferência de participações do Banco Safra e da Turmalina Gestão e Administração de Recursos para os filhos. Embora o sobrenome do clã de banqueiros chame atenção, essa é uma questão que na Justiça paulista favoreceria qualquer outro caso, por já haver jurisprudência formada.A Corte Especial do TJ-SP, em julgamento no ano de 2011, declarou inconstitucional a cobrança do ITCMD sobre doações ou heranças de bens localizados no exterior, que tenham sido repassados por pessoas que residem fora do país ou no caso de o inventário ter sido processado no exterior. Para os desembargadores, a Constituição Federal é clara ao atribuir ao Congresso Nacional a competência para instituir o imposto por meio de lei complementar. Como essa lei ainda não existe, não poderia o Estado, no entendimento do TJ-SP, regular a matéria por meio de uma legislação própria. A cobrança, em São Paulo, foi instituída por meio da Lei nº 10.705, no ano 2000. O tema chegou à Corte Especial por meio de um processo que tem como parte os herdeiros do laboratório farmacêutico Aché. Os filhos de um dos fundadores do laboratório ingressaram com ação para não precisar pagar o imposto ao receber cotas societárias que o patriarca detinha da empresa Evansville Enterprises LLC, sediada nos Estados Unidos. Apesar da decisão favorável e de o caso ter servido como paradigma para todos os demais na Corte paulista, o processo ainda não teve o trânsito em julgado. É mais um entre os que aguardam a decisão do STF. O escritório Machado Meyer, que representa a família Depieri nesse processo, optou por não se manifestar. O julgamento do Supremo Tribunal Federal terá efeito sobre esses casos porque ocorrerá em repercussão geral. A decisão, depois de proferida pelos ministros, terá que ser replicada a todos os processos sobre o mesmo assunto que estão em tramitação no país. O resultado se dará por meio de um recurso da Procuradoria-Geral do Estado (PGE) de São Paulo (RE 851108). Os procuradores sustentam que o artigo 24 da Constituição Federal permite que os Estados cobrem ITCMD. Afirmam que se um dia a lei federal for editada e divergir da norma, aí sim, o governo teria que suspender a prática. O impacto da tese, para o governo de São Paulo, é enorme. Estão em jogo R$ 5,4 bilhões — R$ 2,6 bilhões diretamente relacionados aos processos em curso. O restante é uma estimativa do que teria de ser devolvido aos contribuintes e também o que deixaria de ser arrecadado por não se poder mais cobrar ITCMD nessas situações. Existem, segundo a PGE, pelo menos 200 processos parados no tribunal paulista aguardando o julgamento do STF. Esses casos somam mais de R$ 60 bilhões em doações e heranças. O Valor Econômico apurou nos registros do TJ-SP que um deles envolve integrantes da família Diniz, uma das mais ricas do país. Três sobrinhos do empresário Abílio Diniz ingressaram com ação, em 2016, para não precisar pagar ITCMD sobre bens inventariados que estão no exterior. Eles obtiveram decisão favorável na primeira e na segunda instância. Se os ministros do STF decidirem contra a cobrança, a decisão será replicada ao caso e eles poderão levantar a quantia referente aos impostos que está depositada em juízo. O advogado Leiner Salmaso Salinas, que representa a família no caso, foi procurado pela reportagem, mas não quis comentar. A maioria dos contribuintes entra com mandado de segurança preventivo para impedir que o governo cobre o imposto. No caso da família Steinbruch, da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), no entanto, foi diferente. Os herdeiros foram alvo da Fazenda de São Paulo. O Estado conseguiu, por meio de ação judicial, suspender o inventário. Os procuradores alegaram que os Steinbruch teriam cometido fraude para não pagar impostos sobre uma herança bilionária após a morte da matriarca da família, em 2015. Segundo a PGE afirma no processo, a família teria constituído uma empresa de fachada no Panamá com o único objetivo de receber a herança fora do Brasil. Esse processo, no entanto, ainda não está encerrado. A família alega que a cobrança é inconstitucional. A CSN, por meio de sua assessoria de imprensa, disse que não comentaria o caso, assim como os Advogados que atuam no processo. Procuradores do Grupo de Atuação Especial de Recuperação Fiscal da PGE de São Paulo afirmam que o episódio envolvendo a família Steinbruch é um caso clássico do que se pretendeu evitar com a lei que permite cobrar ITCMD sobre doações e heranças de bens no exterior. “Serve para impedir o planejamento sucessório abusivo”, disse um dos procuradores ao Valor. A decisão do STF não afetará somente São Paulo. Outros 21 Estados também têm legislação para permitir a cobrança do ITCMD. E entre os tribunais estaduais há decisões divergentes. Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, por exemplo, são favoráveis aos Estados. A família Bellini, dona da empresa Marcopolo, multinacional brasileira que fabrica carrocerias de ônibus, ajuizou uma ação para discutir a cobrança do ITCMD pelo Estado do Rio Grande do Sul. Mas, no TJ-RS, não teve êxito. Eles recorreram e aguardam a decisão do STF. Segundo consta do processo, dois herdeiros tentavam evitar a cobrança do imposto sobre cotas da empresa Fabelli Trading, com sede nas Bahamas, repassadas a eles em razão da morte da matriarca. Felipe Perottoni, advogado que atua para a família Bellini, diz que o valor referente ao imposto foi depositado judicialmente e que, em razão disso, a exigibilidade dos valores fica suspensa até que se tenha o julgamento final do processo. Ele argumenta que não há lei complementar prevendo a cobrança de ITCMD nesses casos e, em razão disso, não poderiam os Estados exigir o imposto. O STF vai decidir sobre esse tema por meio do Plenário Virtual. Nesta plataforma, os ministros têm até uma semana para proferir os seus votos. O julgamento será aberto com o voto do relator, Dias Toffoli e — se não houver pedido de vista nem de destaque — a conclusão ocorrerá até as 23h59 do dia 30. (do Valor Econômico)
(CNF - 23/10/2020)