Por Dimitri
Os nossos adversários possuem direitos fundamentais? Para os operadores do direito, essa pergunta não faz sentido. É óbvio que são titulares de um direito todos os sujeitos indicados na norma (“brasileiros”, “trabalhadores”, “crianças”, “gestantes” e assim por diante). Na maioria dos casos, a titularidade é universal, referindo-se as Constituições e os tratados internacionais a “todos”, conforme sugere o próprio termo “direitos humanos”. Saber se o titular é o nosso amigo ou inimigo, em nada muda sua situação jurídica como titular de direitos.
Já na visão política, é muito comum a tendência de favorecer os nossos aliados e de agredir nossos adversários. Esse é o “código” de funcionamento da política, parecido ao de qualquer outro conflito ou competição. A situação torna-se complexa quando o direito acaba sendo contaminado pela lógica do conflito político, com a lógica da amizade/inimizade e proteção/exclusão, incorporando em suas decisões práticas discriminatórias.
Mesmo sendo absolutamente proibido pela Constituição e pelos tratados internacionais discriminar alguém em razão de sua pertença a um grupo, ou em razão de suas opções, posturas e orientações, o estudo crítico do direito encontra infinitos casos em que, sob o manto da objetividade e da neutralidade, certas características de pessoas ou grupos acabam influenciando a decisão.
É aqui que devemos procurar a chave de compreensão do caso do Palácio Guanabara. O litígio decorre do estabelecimento do regime republicano no Brasil, em 1889. Os titulares do novo regime tomaram medidas que visavam apagar a representação monárquica, não só do palco político, mas também do imaginário brasileiro. A presença da antiga dinastia, já exilada à essa altura, por meio de suas propriedades na capital federal era um incômodo à formação de um ideário republicano. A venda compulsória e o confisco desses bens permitiram que isso ocorresse. Encontram-se, assim, no polo passivo do litígio os representantes do novo regime republicano, e, no polo ativo, membros da família do Imperador que acabava de ser deposto.
Há explicações processuais pelo fato de os processos judiciais sobre o Palácio já se encontrarem no segundo século de seu andamento e ainda bem longe da solução definitiva. Mas não se pode afastar a suspeita de que as qualidades politicas das partes e a animosidade do (então novo) poder com os máximos representantes do regime anterior afetaram a compreensão das relações jurídicas pelo Judiciário. Podemos perguntar novamente: O adversário teria menos direitos do que um adepto do governo ou um cidadão politicamente neutro? Antes de decidir um caso devemos examinar os sobrenomes das partes? Nessa hipótese, teríamos uma “justiça política”, ao lado da justiça normal. Se assim for, o Estado de Direito perde seus fundamentos.
As duas ações iniciais foram movidas pela União, em 1891 e 1894, e decididas de maneira desfavorável aos anseios de incorporação da propriedade aos bens nacionais. As duas outras ações, reativas à manutenção do esbulho, movidas pela Princesa destronada, em 1895, e por seus descendentes, em 1955, após terem sofrido toda sorte de desventuras, são aquelas que se perpetuaram até os dias atuais e que foram examinadas pelo Superior Tribunal de Justiça em 6 de dezembro de 2018. A Quarta Turma do Tribunal deu mais uma das tantas decisões sobre o caso. Certamente, não será a última.
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Apesar de ser único em razão da exorbitante demora processual, o caso Palácio Guanabara pertence a uma longa série de litígios que os estudiosos analisam como problemas da justiça transicional. Os derrotados nas lutas políticas sempre perdem posições políticas e sofrem privações de seus direitos. Mas aqui são necessárias diferenciações. Enquanto a perda de ofícios é consequência esperada, as sanções penais, administrativas ou civis geram controvérsias. São medidas questionáveis e efetivamente questionadas em Parlamentos e Tribunais. Leis de anistia, reabilitações, indenizações, restituição de bens, aposentadorias, reintegrações ao serviço público e pedidos de desculpas oficiais são formas de revisitar o que ocorreu no passado, de oferecer nova qualificação normativa a certos fatos e, afinal de contas, de reescrever a história oficial.
Entre as formas de privação de direitos em períodos de transição política, a mais questionável é a privação patrimonial. Quando a forma de aquisição de um bem é lícita e a origem dos recursos utilizados para tanto conhecida, a decisão estatal de privar o proprietário porque ele é um inimigo derrotado e impotente no momento significa fundar o novo regime sobre a violação deliberada de um direito fundamental, direito garantido tanto na nova, como da antiga ordem.
Quando a transição envolve mudança do regime econômico, como ocorreu com as revoluções comunistas, as mudanças nos direitos de propriedade possuem explicação social e garantia constitucional. Mas quando se trata de mudança de regime político que não afeta a estrutura da economia e os direitos fundamentais dos indivíduos, a afetação da propriedade privada não possui justificativa jurídica se não seguir o rito específico da desapropriação, respeitando seus requisitos e o dever de indenizar o proprietário.
Alguém diria que os estados “de exceção”, políticos e econômicos, são frequentes nos sistemas jurídicos. Isso é verdade, mas não oferece justificativa constitucionalmente válida. A suspensão da ordem constitucional fora das hipóteses de exercício de poder constituinte não deve ser admitida. O esbulho possessório ocorrido no Palácio Guanabara por meio da invasão de militares não pode ser considerado exercício de poder constituinte. Por isso cabe ao Judiciário atuar como guardião da continuidade jurídica, ameaçada por interesses políticos.
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A história da Grécia, rica em episódios de abolição e restauração do regime monárquico nos séculos XIX e XX, oferece muitos exemplos do desejo de vingança política contra os representantes do regime derrotado. Uma das medidas que foi tomada repetidas vezes contra a família real foi o confisco de bens comprovadamente privados. A última expropriação dessa espécie ocorreu em 1973 como reação do então governo militar à tentativa do rei Constantino de organizar, com a ajuda de oficiais da Marinha, um contragolpe para afastar a junta militar do Exército.
O caso foi se alastrando, conhecendo reviravoltas políticas e jurídicas, despertando a atenção da opinião pública e causando muitos conflitos, incluindo questionamentos diplomáticos. A Corte Europeia de Direitos Humanos tomou uma decisão exemplar em 2000, atendendo, parcialmente, as reclamações e os pedidos da antiga família real. Os magistrados não tiveram a menor hesitação em afastar as justificativas políticas do Estado grego e constatar uma clara violação da ordem nacional e internacional. Com ulterior decisão de 2002, o Estado grego teve que pagar aos proprietários indenização de aproximadamente 14 milhões de euros. Segundo a Corte, embora a manutenção das propriedades pela família real contrariasse interesses do Estado grego republicano, as garantias do direito privado e dos direitos fundamenteis, consubstanciadas em indenização pecuniária, não poderiam ser afastadas. Basta uma simples leitura dessa decisão para constatar que aplica-se perfeitamente no caso do Palácio Guanabara.[1]
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O caso Palácio Guanabara chamou, nos últimos anos, a atenção da mídia e do público, sendo tratado como se fosse algo curioso e quase divertido (“o processo mais antigo”, algo como dizer: “visite o mais antigo restaurante do mundo”). Ora, para os envolvidos, a morosidade é razão de aborrecimentos, despesas e, afinal de contas, de sofrimento. A justa duração do processo se decide pelo resultado. Nesse caso, sendo quais forem as justificativas (e as suspeitas), está fora de dúvida que houve violação da Constituição e dos tratados internacionais que impõem que o processo não se torne uma desculpa para denegar a justiça de maneira tão duradoura.
Assim sendo, o caso Palácio Guanabara envolve uma dupla violação de direitos fundamentais. A ofensa (primária) do direito de propriedade privada foi agravada pela ofensa (subsequente) do direito ao devido processo legal que envolve a dimensão temporal da duração razoável do processo. O Estado de Direito ficou paralisado, perdendo-se a distinção entre público e privado, entre legalidade e oportunidade.
Um dos mais conhecidos aforismos que indicam a importância dos direitos fundamentais que protegem o indivíduo contra o potencial esmagador do poder estatal, é o my home is my castle. O Estado pode facilmente invadir e confiscar qualquer propriedade particular, tal como perseguir e encarcerar qualquer indivíduo. Mas, nesse caso, o “poder” contraria o “dever” e o Estado de Direito transforma-se em Estado de polícia. No caso que nos interessa, o Estado de Direito impõe que os juízes sigam o aforismo: a casa pertence aos seus proprietários. Mesmo se ela for, do ponto de vista arquitetônico e simbólico, um verdadeiro Castelo.
[1]Uma análise comparativa entre os dois casos pode ser encontrada em português em Guilherme de Faria Nicastro, O direito de propriedade na transição política: uma análise do ‘Caso do Palácio Guanabara”, Escola de Direito de São Paulo da FGV, 2017 (http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/19699). Nos dois casos, as famílias reinantes adquiriram propriedades privadas com capital a elas cedido pelo Estado, em razão de política pública sobre o ofício do Chefe de Estado, expressa em legislação vigente. A contestação desse patrimônio privado, findo os laços monárquicos, foi idêntico em ambos casos. As decisões, no entanto, são, até agora, discrepantes.
Dimitri Dimoulis – Professor de Direito da Escola de Direito de São Paulo da FGV, Doutor e Dós-doutor pela Univ. Saarland (1994 e 1996). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional.
Guilherme De Faria Nicastro – Advogado no escritório Machado meyer Advogados, bacharel em Direito com formação complementar em Relações Internacionais pela Escola de Direito de São Paulo da FGV (2017). Autor do estudo “O direito de propriedade na transição política: uma análise do ‘Caso do Palácio Guanabara’”.
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(Notícia na Íntegra)