A reforma administrativa proposta pelo governo paulista, de João Doria (PSDB), ameaça a autonomia das agências reguladoras, segundo companhias que operam no Estado. O temor é que as decisões dos órgãos se tornem mais políticas e menos técnicas, o que poderá trazer insegurança jurídica aos contratos de concessão de rodovias, saneamento básico e outros setores delegados à iniciativa privada.
A origem da preocupação é um artigo do projeto de lei, que determina que qualquer decisão dos órgãos reguladores do Estado que possa gerar "encargo, ônus financeiro ou obrigação ao Estado de São Paulo" deverá ser previamente submetida à avaliação do governo. Essa restrição se aplicaria às duas agências paulistas: a Agência de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp) e a Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp). Na sequência, o texto diz que, caso essa consulta prévia seja descumprida, o diretor da agência perderá seu mandato, além de estar passível de sofrer sanções penais e por improbidade administrativa. A regra foi incluída em um projeto de lei do governo que propõe mudanças administrativas, com objetivo de garantir o ajuste fiscal do Estado. O texto tramita em regime de urgência na Assembleia Legislativa. Para a Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR), a regra ameaça a autonomia das agências reguladoras. "O texto caiu como uma bomba no setor. Hoje, já existe uma lentidão na análise das agências, e a ideia é criar novas instâncias de avaliação, sem definir prazos e processos, ou seja, o governo pode levar o tempo que quiser para tomar uma decisão", avalia César Borges, presidente da entidade, que fala por empresas que operam no Estado, como CCR, Ecorodovias, Arteris e Pátria. Uma das preocupações é em relação aos reequilíbrios econômico-financeiros dos contratos. Esses processos são comuns em concessões de longo prazo, mas, historicamente, se mostraram fonte de diversas disputas administrativas e judiciais entre o governo e as empresas. No caso da Artesp, há pendências originadas em 2006 que até hoje não chegaram a um desfecho. Além da preocupação quanto ao prazo para a tomada de decisões, há um temor de possíveis interferências políticas, já que a palavra final sobre os reequilíbrios passará a ser do governo e não da agência, avalia Borges. O temor não se aplica apenas ao setor de rodovias. No caso da Sabesp, há uma preocupação grande, diz um analista do setor, que pediu anonimato. Como a companhia de saneamento opera muitos contratos precários, com regras pouco definidas, a Arsesp exerce um papel de regulação discricionária, no qual os reajustes de tarifas são definidos periodicamente com base em critérios de mercado, e não fatores pré definidos. Caso a nova regra seja aprovada, abre-se espaço para que o governo interfira nos reajustes, caso avalie que a tarifa proposta possa afetar seu orçamento de alguma forma. Em nota, o governo paulista afirmou que a Artesp e a Arsesp estão vinculadas à Secretaria de Governo e que participaram das discussões do projeto de lei. "É legítimo e responsável da gestão pública que uma decisão que vá onerar o orçamento, comprometendo o dinheiro do contribuinte, seja avaliada, prevalecendo a independência e soberania da agência reguladora. O Governo do Estado está sempre aberto ao diálogo com a sociedade para observações que melhorem suas proposições", informou, em nota. Procuradas, Artesp e Arsesp disseram que o posicionamento das agências seria o mesmo daquele enviado pelo governo. A figura do órgão regulador foi criada no Brasil no fim da década de 1990, justamente com a função de atuar como um mediador imparcial entre o usuário do serviço, o poder público e a empresa privada, afirma Rafael Vanzella, sócio do Machado Meyer. "Agora, se as decisões do órgão passam a precisar de aval do governo, em última instância, a agência perde sua razão de existir", afirma. Para Letícia Queiroz de Andrade, sócia do Queiroz Maluf Advogados, a proposta é um retrocesso. "É ruim não só para a regulação do setor, é ruim para o Estado, para o país", avalia. A advogada diz que o artigo foi muito mal recebido pelo mercado, que hoje já vê com incômodo a prerrogativa do governo paulista de decidir sobre a forma como os reequilíbrios econômicos-financeiros são aplicados - se por extensão de prazo, reajuste de tarifa ou pagamento de indenização. Caso a mudança seja aprovada, o poder de interferência do Estado passará a ser ainda maior. A mudança também deverá ser mal vista por potenciais interessados no programa de desestatizações do governo paulista, avalia Borges. "A falta de independência das agências gera judicialização, isso pode afastar investimentos no futuro", afirma.Jornalista: HIRATA, Taís
(Valor Econômico - 25.08.2020, p. B2)