O Brasil tinha mais de 5 milhões de famílias vivendo em moradias irregulares em 2019, segundo o levantamento mais recente divulgado em maio pelo IBGE.
Os nomes variam — favelas, invasões, baixadas, comunidades, ressacas, palafitas —, mas os problemas são os mesmos: as pessoas não têm título de propriedade porque ocupam irregularmente terrenos públicos ou particulares e, na maioria das vezes, não têm acesso a água, esgoto, eletricidade, coleta de lixo e pavimentação. Saúde e educação são itens de luxo e a ameaça de despejo, uma constante. Enquanto o poder público mundo afora tem falhado sistematicamente na resolução desse fenômeno urbano global, uma empresa nascida em Curitiba tenta subverter a lógica de que essa é uma questão exclusiva de governos e busca trazer uma abordagem empresarial para a mesa. Em 2001, os irmãos André e Daniel Albuquerque fundaram a Terra Nova e inventaram a regularização fundiária urbana como negócio. Na prática, a empresa desenvolveu um método para fazer a mediação de conflito entre os donos dos terrenos e as famílias que ocupam ilegalmente as áreas. Ao final do processo, que costuma ser trabalhoso e levar anos, a empresa consegue que essas famílias se tornem donas dos terrenos e casas ao indenizar os proprietários por meio de pagamentos parcelados pelo prazo de 5 a 10 anos. Tudo homologado judicialmente. Com isso, consegue contornar obstáculos políticos e orçamentários de uma expropriação feita pelo poder público. Embutida na prestação vai a remuneração da Terra Nova pelo serviço: 30% da parcela mensal, que costuma ser de R$ 350 (no passado já foi bem menos que isso). Além da mediação e do acordo, a empresa supervisiona a execução dos contratos e gerencia os pagamentos. Os acordos costumam contemplar também a execução dos serviços de infraestrutura básica, levando à urbanização das áreas. Além de ajudar as famílias a sair da marginalidade e conquistar dignidade de moradia e todos os benefícios associados, a empresa acredita que seu negócio destrava um capital que estava morto e o traz para a economia formal. “Com a regularização, o valor da terra pode aumentar até três vezes, elevando o valor do capital nas mãos das famílias”, diz o fundador e advogado André Albuquerque. A MOV Investimentos, fundo de venture capital de impacto que investiu na Terra Nova em 2013, estima que há um total de R$ 15 bilhões em terras em disputa hoje no país e que, uma vez regularizadas, seu valor poderia saltar a R$ 45 bilhões. Até hoje, a empresa já conseguiu regularizar 29 áreas no país. Até 2019, eram 15 mil famílias com a regularização aprovada e 70 mil engajadas em mediação. Paulo Bellotti, diretor-executivo da MOV, calcula que, para 15 mil famílias, o valor gerado pela regularização chega a R$ 500 milhões. A abordagem considerada inovadora rendeu prêmios internacionais à Terra Nova e a tornou objeto de um estudo de caso da Harvard Business School recém-publicado.
Descasamento crônico de caixa
Mas nem tudo são louros. Bem longe disso. O modelo de negócio que a Terra Nova implantou carrega um descasamento de caixa crônico. A empresa leva anos para desenvolver a regularização de uma área, a receita de cada projeto é diluída ao longo de dez anos e, enquanto isso, falta capital para continuar girando e crescendo.
“Os projetos são difíceis de se botar de pé. Eles geram carteiras grandes, de R$ 10 milhões de receita. Mas às vezes ficamos um ano e meio sem colocar um projeto para dentro”, diz Albuquerque.
A solução disponível sempre foi recorrer aos bancos com os recebíveis em mãos para antecipar receita. Mas esse é um recurso finito, que não resolve o problema de forma estrutural e, com o tempo, levou a companhia a alto endividamento. Tudo isso também foi agravado por uma definição equivocada de preço do serviço e por uma tentativa de expansão geográfica que não deu certo.
Durante muito tempo, a empresa viveu com a corda no pescoço e por vezes esteve prestes a quebrar.
Desde 2003, a companhia passou a contar com o apoio financeiro do arquiteto Osvaldo Hoffman, cuja família era a proprietária de um terreno regularizado pela Terra Nova na região de Curitiba. Com dois investimentos, um em 2003 e outros em 2005, Hoffman alcançou 20% da empresa.
Em 2013, foi a vez de a Terra Nova receber investimento da MOV, a gestora de impacto que nasceu dentro do family office dos fundadores da Natura. Foram dois aportes, de R$ 6,4 milhões e R$ 4,5 milhões, por meio de debêntures conversíveis em ações.
Ao fim do segundo aporte, em 2016, e de nova reestruturação financeira, a MOV ficou com 45% da empresa, Hoffman com outros 45% e os irmãos fundadores foram diluídos para 10%.
“Ou era isso ou a empresa quebrava”, diz André Albuquerque.
De lá para cá, a empresa conseguiu se organizar. No ano passado, atingiu o break even pela primeira vez. A covid-19 complicou o cenário de 2020, multiplicando por dez a taxa de inadimplência, que historicamente ficava em 2%. O jeito foi reduzir salários, equipe e lançar mão dos auxílios governamentais para atravessar o período.
A empresa, hoje concentrada em Curitiba e São Paulo, deve voltar a buscar uma expansão geográfica para outros Estados, diversificando o risco representado pela crise fiscal dos municípios.
Um grant de US$ 750 mil concedido pela Omidyar Network no segundo semestre do ano passado ajudará a empresa a melhorar o capital humano, contratar pesquisadores para medir o impacto social e integrar seus sistemas numa plataforma única.
Paulo Bellotti diz que a MOV está otimista com a possibilidade de atingir um retorno positivo da ordem de 16% a 18% ao ano ao final do investimento, previsto para 2025. Mas tudo vai depender do sucesso de novos projetos em desenvolvimento.
Um em particular.
O assentamento dos assentamentos
Prestes a completar 20 anos, a Terra Nova está em vias de fazer o maior negócio de sua história. Os sócios acreditam que há potencial de uma grande virada de escala, modelo de negócios e até societária.
Desde 2017, André Albuquerque vem trabalhando para originar um projeto de regularização de moradia de 6 mil famílias em Nova Lima, na Grande Belo Horizonte. Trata-se de uma área de 5,4 milhões de metros quadrados — ou 760 campos de futebol — que foi doada por uma mineradora para a campanha de Juscelino Kubitschek à presidência nos anos 50.
A área foi loteada e vendida para levantar fundos, mas a infraestrutura nunca veio, os proprietários não ocuparam os terrenos e, com o passar das décadas, as ocupações ilegais se sucederam. Atualmente, são cerca de 9 mil posseiros, sendo que 6 mil deles efetivamente ergueram casas nos terrenos ocupados.
“É o maior projeto de regularização do Brasil. No formato privado, provavelmente, é o maior do mundo em termos de área”, diz Albuquerque.
Água Limpa, como chama o projeto, não é uma vila ou comunidade. É praticamente uma cidade, que envolverá muito mais do que a infraestrutura básica. Estão previstas praças, ciclovias, área comercial e sistema viário, diz.
Só em infraestrutura, devem ser investidos R$ 300 milhões. Os contratos, de R$ 70 mil cada um, deverão ser pagos em 25 anos, em parcelas de pouco mais de R$ 250.
Na outra ponta, a dos proprietários, a complexidade também é maior, porque são 13 mil CPFs diferentes, que terão que ser notificados para dizer se se opõem à reurbanização.
Esse projeto está sendo gestado fora da empresa por Albuquerque e a Terra Nova só entrará em ação para fazer a mediação dos conflitos e os contratos. Já existe um termo de compromisso preliminar assinado com a comunidade e a expectativa é que os contratos comecem a ser captados em setembro.
Tanto Albuquerque quanto os investidores da Terra Nova estão convencidos de que, para se tornar escalável e sustentável, a empresa precisa operar num esquema mais “leve”.
Ou seja, funções como originação, lançamento dos projetos, gerenciamento dos pagamentos e até mesmo o relacionamento com as comunidades podem ser terceirizadas para parceiros locais.
A Terra Nova deve concentrar apenas o “core” da regularização: o processo de mediação de conflitos e a homologação dos contratos. “A empresa tem que entrar nas etapas críticas para garantir a integridade do processo”, diz Bellotti.
Albuquerque quer também criar Sociedades de Propósito Específico (SPEs) para cada um dos projetos.
E daí poderá vir o pulo do gato: pela primeira vez, o empreendedor quer tentar levar um projeto de regularização fundiária ao mercado financeiro.
De posse dos contratos assinados, a ideia é estruturar uma securitização de recebíveis e vender os papéis a investidores. Esse projeto vem sendo desenvolvido pelo escritório de advocacia Machado Meyer e pela butique financeira Santa Luzia.
“Com essa operação, eu quero recomprar os fundos e reassumir o controle da empresa”, diz Albuquerque.
No caso da MOV, com a entrada dos recursos em caixa, a Terra Nova poderá recomprar as debêntures, revertendo a diluição. “Temos até 2025 para sair do investimento e nossa ideia é deixar a empresa em condições de continuar crescendo”, diz Bellotti.
(Capital Reset - 03/07/2020)