Com a promulgação da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/19), que institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e cujo propósito é estabelecer garantias de livre mercado, já estão em vigor, desde 20 de setembro, novas regras que deverão simplificar o dia a dia do empresário brasileiro e desburocratizar o ambiente de negócios nacional.

Para viabilizar tais medidas, também foram alteradas normas e leis específicas (entre elas o Código Civil) cuja natureza e finalidade impactam diretamente o direito societário e, consequentemente, a forma e a condução dos negócios por empreendedores no país.

A Lei da Liberdade Econômica criou a figura da “sociedade unipessoal”, isto é, uma sociedade de responsabilidade limitada com um único sócio. Antigamente, para se abrir uma empresa de responsabilidade limitada, em que o patrimônio dos sócios para solução de passivos da sociedade se restringe ao valor da sua contribuição ao capital social, era necessário recorrer a uma sociedade limitada (Ltda.) ou a uma empresa individual de responsabilidade limitada (Eireli).

No entanto, nenhum desses dois tipos societários realmente atendia às necessidades dos empresários no país. A sociedade limitada, por natureza, exigia pelo menos dois sócios em seu quadro social. Segundo dados de 2014,[1] 85,7% das sociedades limitadas no Brasil tinham somente dois sócios. A pesquisa não informa, mas uma simples observação do mercado permite verificar que, na grande maioria das sociedades limitadas, o segundo sócio detém uma participação meramente simbólica, como 0,1% do capital social, apenas para satisfazer a regra da pluralidade dos sócios.

As Eirelis, por sua vez, como o próprio o nome indica, são formadas por apenas uma pessoa, mas representam um veículo pouco usado no Brasil, pois estão obrigadas por lei a integralizar capital social de, no mínimo, cem salários mínimos (atualmente, R$ 99.800) no ato de sua constituição. Ou seja, ao tentar solucionar o problema da pluralidade dos sócios com a Eireli, o legislador acabou criando um entrave financeiro para a grande maioria dos pequenos negócios no Brasil, que, segundo dados divulgados pelo Sebrae em 2018,[2] representam quase 99% dos empreendimentos, divididos entre micro e pequenas empresas – uma parcela relevante, portanto.

Com a criação da sociedade unipessoal, passa a ser admitida a constituição de uma sociedade de responsabilidade limitada por uma única pessoa, sem exigência de capital mínimo ou máximo, nos termos do artigo 1.052 do Código Civil.

Outra medida há muito tempo desejada diz respeito à desconsideração da personalidade jurídica. Em sociedades em que há divisão patrimonial dos bens dos sócios e da empresa, com a limitação da responsabilidade daqueles perante terceiros (como ocorre nas sociedades limitadas por exemplo), a lei prevê que a personalidade jurídica da empresa seja desconsiderada quando submetida a abuso por administradores e/ou sócios, de modo que estes sejam responsabilizados pelas obrigações da sociedade.

Tal desconsideração seria devida “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial”. Como o Código Civil não especifica o que caracteriza desvio de finalidade ou confusão patrimonial, coube à doutrina e à jurisprudência definir tais conceitos ao longo dos anos. Além disso, ao dispor que a desconsideração seria devida para que “os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações da sociedade fossem estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”, o legislador acabou deixando margem suficiente para que sócios e administradores que nada tinham a ver com o ato abusivo também fossem responsabilizados, como sócios minoritários sem poder de gestão, por exemplo.

É louvável, portanto, a inovação trazida pela Lei da Liberdade Econômica, que alterou o artigo 50 do Código Civil para restringir sua interpretação. Com a nova redação, ficou especificado que a desconsideração da personalidade jurídica deve ocorrer para alcançar os bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica “beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”. Também foram definidos os conceitos de “desvio de finalidade” e “confusão patrimonial”, a fim de garantir tratamento equânime sobre o tema perante os diversos tribunais do país e maior segurança jurídica ao ambiente de negócios brasileiro.

Além de fixar parâmetros mais claros para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, a Lei da Liberdade Econômica buscou esclarecer que seu caráter é de cunho excepcional e que a mera existência de grupo econômico não autoriza a sua aplicação. A nova lei também enalteceu o princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas como um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos. Em artigo anterior neste portal, as novas regras para a desconsideração da personalidade jurídica são abordadas em mais profundidade.

Com a Lei da Liberdade Econômica, a interpretação dos contratos empresariais deverá observar novas normas, as quais valorizam mais o que foi combinado entre as partes (pacta sunt servanda). Isso confere maior autonomia para as partes pactuarem livremente regras de interpretação em detrimento das estipulações legais, a fim de impor certos limites para a intervenção judicial na interpretação de tais contratos.

De acordo com alguns princípios estipulados pela nova lei, a interpretação do contrato deve considerar o sentido que:

  1. for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio;

  2. corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio;

  3. corresponder à boa-fé;

  4. for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e

  5. corresponder àquilo que seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida.

Fica definido também que, nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado e a excepcionalidade da revisão contratual, presumindo-se a simetria e o equilíbrio dos contratos civis e empresariais até que se prove o contrário. Fica garantido também que a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada.

Com essas alterações, dúvidas de interpretação de contratos civis e comerciais à luz das leis aplicáveis, que antes poderiam ter o efeito de restringir a liberdade contratual do empreendedor, agora se nortearão por critérios mais objetivos, dada a maior autonomia das partes no momento da elaboração do documento. A mudança evitará interpretações muitas vezes desfavoráveis de situações de duplo sentido ou não previstas por lei.

Seguindo a recente onda de modernização do Estado e digitalização de dados e informações, a Lei da Liberdade Econômica também estabelece que documentos públicos ou particulares poderão ser guardados em meios eletrônicos, hipótese em que terão o mesmo valor probatório que documentos físicos para todos os efeitos legais e para a comprovação de qualquer ato de direito público. Os originais de tais documentos poderão ainda ser destruídos após sua digitalização, desde que constatada a integridade do documento digital, nos termos que serão estabelecidos em regulamento a ser editado pelo governo federal.

Foi alterada ainda a Lei de Registro Público de Empresas Mercantis (Lei nº 8.934/94), com o objetivo de garantir maior celeridade e eficiência na constituição e extinção de empresas e no registro e arquivamento de atos societários. Agora, as juntas comerciais devem analisar e registrar tais atos em prazos específicos, sob pena de que eles sejam considerados arquivados.

Registro automático
  • Atos, documentos e declarações que contenham informações meramente cadastrais.
  • Atos societários em geral (exceto constituição de S.A. e reorganizações societárias), desde que utilizado instrumento padrão estabelecido pelo Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração.
Registro em até 2 dias úteis
  • Atos societários em geral, exceto (i) atos, documentos e declarações que contenham informações meramente cadastrais e (ii) atos para os quais a lei estipule o prazo de 5 dias úteis (listados abaixo).
Registro em até 5 dias úteis
  • Constituição de S.A.
  • Reorganizações societárias (transformação, incorporação, fusão e cisão de empresas mercantis).
  • Constituição e alterações de consórcio e de grupo de sociedades.

Ao estabelecer que atos, documentos e declarações que contenham informações meramente cadastrais sejam levados automaticamente a registro se puderem ser obtidos de outras bases de dados disponíveis em órgãos públicos, a lei criou a figura do registro automático de informações, transferindo do indivíduo para o Estado parte do ônus de manter dados cadastrais atualizados.

Outra alteração há tempos aguardada era a permissão para que sociedades limitadas emitam debêntures (títulos de crédito) em oferta privada, direito hoje exclusivo das sociedades anônimas. Ela havia sido incluída no texto da Medida Provisória nº 881/19 na comissão mista do Congresso, porém foi removida do texto legal pela Câmara dos Deputados. Espera-se que o tema volte a ser discutido no Legislativo, dado o impacto positivo que pode gerar no mercado de capitais brasileiro.

Os principais beneficiados pelas simplificações e pela desburocratização trazidas pela Lei da Liberdade Econômica deverão ser as pequenos empresas (incluindo startups), o que possivelmente repercutirá em geração de empregos ao longo dos anos. As medidas criam também um ambiente mais propício à inovação e à realização de negócios, o que pode dinamizar a economia e contribuir para tornar o país mais competitivo no cenário internacional.

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[1] Fonte: Radiografia das Sociedades Limitadas, realizada pelo Núcleo de Estudos em Mercados e Investimentos - FGV Direito SP, publicado em outubro de 2014: https://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/arquivos/anexos/radiografia_das_ltdas_v5.pdf

[2] Fonte: Estudo de mercado: pequenos negócios em números, http://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/ufs/sp/sebraeaz/pequenos-negocios-em-numeros,12e8794363447510VgnVCM1000004c00210aRCRD