A apropriação de créditos extemporâneos das contribuições ao PIS e à Cofins – aqueles não lançados no período de competência original – tornou-se um dos maiores focos de controvérsia no contencioso administrativo federal.

O debate central gira em torno da necessidade de retificação prévia de obrigações acessórias, como a Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais (DCTF), o Demonstrativo de Apuração de Contribuições Sociais (Dacon) e, mais recentemente, a EFD-Contribuições, como condição para o exercício de um direito material.

De acordo com a tese do fisco, o contribuinte só tem direito ao aproveitamento do crédito se efetuar previamente a retificação das declarações acessórias em cada um dos períodos de competência.

Essa questão ganhou relevância no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) com a consolidação do entendimento das turmas de julgamento na Súmula Carf 231.

A súmula, aprovada em setembro de 2025, acolhe a tese do fisco e dispõe: “O aproveitamento de créditos extemporâneos da contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins exige a apresentação de DCTF e Dacon retificadores, comprovando os créditos e os saldos credores dos trimestres correspondentes.”

A súmula consolida o posicionamento de que o exercício do direito material ao crédito extemporâneo está condicionado ao atendimento de uma obrigação formal: a prévia retificação das obrigações acessórias relativas aos períodos de origem.

Apesar de essa exigência ter o objetivo legítimo de otimizar o controle fiscal, ela cria, quando fixada como condição absoluta, um requisito que transforma obrigações acessórias – de natureza meramente informativa – em elemento indispensável para a fruição de um direito previsto em lei. A medida desafia o princípio da verdade material consagrado no sistema tributário.

É fato que a simples existência da súmula impede a discussão da matéria no âmbito das turmas ordinárias e mesmo na Câmara Superior de Recursos Fiscais, já que o entendimento sumulado é obrigatório e vinculante aos órgãos de julgamento do Carf (art. 118, §3º e 123, §4º do Regimento Interno do Carf – Ricarf). Entretanto, até mesmo considerando a existência de distinguishing entre casos concretos e o enunciado, o tema merece debate mais aprofundado. Esse é o alerta que este artigo pretende fazer.

O direito ao crédito é da essência do regime da não cumulatividade das contribuições ao PIS e à Cofins. O critério elementar para a apuração dos dois tributos reside na aferição de valores relacionados à aquisição de bens ou serviços, de insumos, energia elétrica, entre outros.

O §4º do art. 3º das leis 10.637/02 e 10.833/03 dispõe expressamente que o crédito não aproveitado em determinado mês poderá ser aproveitado nos meses subsequentes. Prioriza-se, assim, a substância do direito em detrimento de um formalismo temporal rígido.

Historicamente, as turmas ordinárias do Carf adotaram uma interpretação alinhada a essa premissa, consagrando o princípio da verdade material. Prevalecia o entendimento de que, se o contribuinte comprovasse a origem, a legitimidade e a não utilização prévia dos créditos, a apropriação poderia ser realizada diretamente na escrituração do período corrente, sem a necessidade de retificar declarações passadas.

Essa visão, presente em acórdãos como o 3301-014.399 e o 3401-013.781, partia do pressuposto de que as obrigações acessórias têm finalidade informativa e de controle, não podendo criar obstáculos ao exercício de um direito material previsto em lei. Negar o crédito a um contribuinte que provou sua existência, apenas pela ausência de uma formalidade, seria uma violação à hierarquia normativa e à própria lógica do regime não cumulativo.

A partir de 2024, e com maior intensidade em 2025, a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) promoveu uma guinada interpretativa, passando a adotar uma tese marcadamente formalista.

Julgados como os acórdãos 9303-014.081, 9303-010.080 e 9303-015.592 consolidaram o entendimento de que o aproveitamento extemporâneo exigiria, invariavelmente, a retificação das declarações do período de origem.

O argumento central dessa corrente é que o crédito precisa ser “apurado” na competência original para que possa ser utilizado posteriormente. A única forma de realizar essa “apuração” retroativa seria por meio da correção das obrigações acessórias, como a DCTF e o Dacon. Lançar o crédito diretamente no período atual, segundo essa visão, seria criar um “crédito não apurado”, figura que não encontraria amparo legal.

Foi essa mudança recente que culminou na aprovação da Súmula Carf 231, em 5 de setembro de 2025.

Ocorre que a súmula transformou uma obrigação acessória em condição de existência para um direito material, acarretando graves consequências práticas e expondo contradições sistêmicas.

O primeiro ponto crítico é o paradoxo da verdade material. Em discussões sobre a comprovação de saldo credor para fins de ressarcimento, o Carf frequentemente considera as declarações como “meramente informativas”, exigindo prova material robusta, como no Acórdão 3302-015.215. Entretanto, para o aproveitamento extemporâneo, a mesma declaração, agora retificada, é elevada à condição de requisito indispensável. O contribuinte se vê em um cenário onde a declaração não prova o crédito, mas sua ausência impede seu uso.

O segundo ponto crítico é a consequência do primeiro: a DCTF e o Dacon do período são reconhecidos como únicos e absolutos meios de prova. Ainda que o contribuinte traga evidências de não aproveitamento em períodos anteriores por outros elementos, ou mesmo que a fiscalização disponha de meios para investigar o aproveitamento de outros períodos, a simples ausência de apresentação da DCTF e do Dacon retificados determinará a legitimidade do crédito.

Há um evidente anacronismo que justifica pedidos de distinguishing para a não aplicação da súmula: o enunciado exige a retificação do Dacon, uma obrigação acessória extinta.

Atualmente, a declaração em vigor é a EFD-Contribuições. Para além da diferença de nomenclatura das declarações acessórias de cada período, a questão é que as duas declarações têm conteúdos informativos distintos. A atual obrigação dispõe de campos específicos para créditos extemporâneos (registros 1100 e 1500), permitindo o controle fiscal sem a necessidade de reabrir períodos passados.

Mesmo assim, em casos recentes, as turmas ordinárias ampliaram a exigência de retificação também para o período da EFD-Contribuições (acórdãos 3202-002.954 e 3202-002.939), aplicando sem maiores reflexões a súmula em um tempo histórico ao qual não pertence.

O cenário atual revela profunda tensão entre a literalidade da lei, que assegura um direito material, e a interpretação administrativa, que lhe impõe um requisito formal. Ao consolidar a visão formalista, a Súmula 231 aumenta os custos de conformidade e desafia o princípio da verdade material.

Todas as evidências indicam que a controvérsia migrará de forma definitiva para o Poder Judiciário, ao qual caberá decidir se o direito material ao crédito, expressamente garantido por lei federal, pode ser restringido por uma norma infralegal e por uma orientação sumular administrativa. Até lá, o tema permanecerá como uma das áreas mais sensíveis e litigiosas do direito tributário, simbolizando, assim, o embate entre substância e forma.

O Machado Meyer está à disposição para auxiliar na compreensão de todas as especificidades relacionadas ao tema e na interpretação da legislação tributária.