O direito à compensação tributária recomenda a reflexão sobre as normas editadas pelo legislador que moldam o instituto. Entre as regras sobre compensação tributária, merece especial destaque o artigo 170-A do Código Tributário Nacional (CTN), introduzido pela Lei Complementar nº 104/2001 (LC 104/01). O dispositivo foi editado em um contexto de grande proliferação de demandas judiciais tributárias como decorrência da notória sanha arrecadatória governamental e de exigências de constitucionalidade e legalidade questionáveis. Como a compensação tributária federal havia sido introduzida no ordenamento jurídico na década de 1990 ainda sem muita regulamentação, os contribuintes interpretaram o instituto para pleitear ao Poder Judiciário a concessão de medidas liminares visando à recuperação imediata de tributos indevidamente recolhidos a maior, o que muitas vezes era deferido. No entanto, como a provisoriedade é inerente ao instituto da medida liminar, algumas decisões acabavam sendo reformadas posteriormente, gerando insegurança jurídica não só aos contribuintes como à administração pública. O objetivo do artigo 170-A do CTN foi conferir maior segurança jurídica à compensação tributária, admitindo-a apenas quando o direito se tornar líquido e certo,[1] o que ocorre, normalmente, no momento do trânsito em julgado da decisão judicial.
Recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida e recurso especial repetitivo Desde a edição da Emenda Constitucional nº 45/2004 (EC 45/04), o legislador pátrio vem externando sua intenção de conferir aos jurisdicionados um Poder Judiciário mais eficiente, introduzindo garantias fundamentais, como a razoável duração do processo, a celeridade e, essencialmente, a maior segurança jurídica nas decisões. Foi exatamente nesse cenário que surgiu o instituto da “repercussão geral” como novo pressuposto para o cabimento do recurso extraordinário. Posteriormente, diversas alterações introduzidas no ordenamento jurídico buscaram privilegiar a uniformização das decisões judiciais, como a Lei nº 11.418/2006, que introduziu os artigos 543-A, 543-B e 543-C no Código de Processo Civil de 1973 (CPC 73), os dois primeiros regulamentando os recursos submetidos à repercussão geral e o último editado para criar os recursos submetidos à chamada sistemática dos “repetitivos” no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Com a promulgação do Código de Processo Civil de 2015 (CPC 15), houve uma necessidade ainda maior de respeito e uniformização da jurisprudência, a fim de mantê-la estável, íntegra e coerente,[2] inclusive com o aprimoramento dos institutos da repercussão geral e dos recursos repetitivos e a criação de outros instrumentos processuais destinados à estabilização dos provimentos jurisdicionais.[3] A intenção de conferir mais força aos precedentes levou a inclusão, dentro das hipóteses de concessão da tutela provisória, da chamada tutela de evidência – que independe da urgência do pedido (o chamado periculum in mora) – nos casos em que há tese firmada em julgamento de recursos repetitivos ou em súmula vinculante.[4] Como bem pontuou a ministra Rosa Weber em seu voto proferido no julgamento do habeas corpus nº 152.752/PR, “a consistência e a coerência do desenvolvimento judicial do Direito são virtudes do sistema normativo enquanto virtudes do próprio Estado de Direito. As instituições do Estado devem proteger os cidadãos de incertezas desnecessárias referentes aos seus direitos”. Tudo isso está em linha com os princípios constitucionais da igualdade, razoável duração do processo e a segurança jurídica. Vê-se, dessa forma, que, desde a edição da EC 45/04, o legislador vem dotando o sistema processual de mecanismos aptos a tornar a prestação da tutela jurisdicional mais eficaz e tempestiva, possibilitando que a parte consiga dar efetividade ao direito material pleiteado e concedido pelo Poder Judiciário. Isso se dá desde a positivação de garantias fundamentais, como a celeridade processual e a razoável duração do processo (EC 45/04), até a positivação de norma que estabelece o rol de decisões que apresentam, de certa forma, efeito vinculante (art. 927 do CPC/15), com o objetivo de uniformizar a jurisprudência, sempre privilegiando a segurança jurídica. Nesse contexto, a questão que se põe é: como conjugar o artigo 170-A do CTN quando há tese firmada em recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ou em recurso especial repetitivo pelo STJ, a fim de evitar que o contribuinte que foi diligente em ajuizar uma demanda judicial objetivando o reconhecimento do seu direito subjetivo ao crédito permaneça em situação desfavorável com relação ao contribuinte que não ajuizou demanda judicial?
Interpretação sistemática do ordenamento jurídico e o Carf Ao enxergarmos a tributação como uma exceção ao direito fundamental de propriedade reconhecido pela Constituição Federal (CF 88), caso haja tese firmada pelos tribunais superiores no sentido de que determinado tributo não é devido ou que determinada base de cálculo não seja aplicada, é necessário que seus efeitos sejam sentidos no plano prático de forma mais célere possível, inclusive, se for o caso, com relação ao reconhecimento do direito subjetivo ao crédito. Nesses casos, não há razão para postergar o aproveitamento legítimo do crédito líquido e certo. Não é razoável admitir que um contribuinte que ajuizou ação judicial fique na espera do trânsito em julgado de uma decisão favorável para pleitear administrativamente o seu pedido de compensação quando já existe uma tese favorável fixada pelos tribunais superiores. É necessário, portanto, que tanto o Poder Judiciário como a administração tributária interpretem sistematicamente o ordenamento jurídico buscando privilegiar a igualdade e a segurança jurídica entre os contribuintes. O próprio Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) já reconhece a força dos precedentes ao vincular suas decisões às conclusões proferidas pelos tribunais superiores na sistemática dos recursos repetitivos (artigo 62, §2º, do Regimento Interno do Carf). Além disso, tanto o STF quanto o STJ já reconheceram a necessidade de interpretação sistemática do ordenamento jurídico em busca da maior harmonização entre as normas.[5] Tal interpretação não representa a revogação do limite estabelecido pelo artigo 170-A do CTN, mas sim, de acordo com determinado cenário fático posto sob exame, a consideração do dispositivo em conjunto com as demais normas e garantias previstas pelo ordenamento jurídico, para conferir maior eficácia, confiança e previsibilidade na prestação da tutela jurisdicional. Nesse sentido, merecem destaque duas decisões proferidas, uma na esfera judicial e outra na esfera administrativa. Em 2017, a 5ª Vara da Justiça Federal de São Paulo concedeu tutela provisória de evidência para assegurar ao contribuinte seu direito de compensar imediatamente os valores indevidamente recolhidos ao Fisco,[6] justamente com base em entendimento sumulado pelo STJ. Mais recentemente, a 4ª Câmara da 2ª Turma Ordinária do Carf, no julgamento do Processo Administrativo nº 10880.906342/2008-96,[7] por unanimidade, deu parcial provimento ao recurso voluntário interposto pelo contribuinte para processar o pedido de compensação formulado antes do trânsito em julgado da decisão judicial favorável ao ressarcimento dos valores de PIS e Cofins pagos a maior. O conselheiro relator pautou seu entendimento justamente na interpretação sistemática do artigo 170-A do CTN, considerando as peculiaridades fáticas apresentadas e o entendimento fixado pelo STF no julgamento do RE nº 357.950/RS, afastando, no caso, uma leitura engessada e isolada do dispositivo. Portanto, apesar de se tratar de discussão incipiente no âmbito dos tribunais judiciais e administrativos, o assunto nos convida a uma maior reflexão sobre a interpretação e o alcance do artigo 170-A do CTN, principalmente quando, ponderando as peculiaridades de cada caso, abre-se espaço para conjugá-lo com outras regras e princípios constitucionais e processuais previstos em nosso ordenamento jurídico, privilegiando-se o direito à compensação tributária, a celeridade processual, a segurança jurídica e o descongestionamento da Justiça.
1. Exposição de Motivos nº 820, de 6 de outubro de 1999, assinada pelo então ministro da Fazenda, Pedro Malan.
2. Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
3. Como, por exemplo, o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas previsto no artigo 976 do CPC/15.
4. Art. 311. A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando: (…).
II - as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante;
5. ADI nº 2.650/DF e AgRg no Ag em REsp nº 2011/0176982.
6. Cumprimento Provisório de Sentença nº 5007628-70.2017.4.03.6100, juiz federal substituto Tiago Bitencourt de David, decisão proferida em 14/07/2017.
7. https://www.conjur.com.br/2018-abr-24/seguindo-stf-carf-autoriza-compensacao-antes-transito-julgado