Capitais como Manaus e Belo Horizonte têm acordos com empresas para contruir e a administrar unidades de saúde. Contratos, porém, precisaram ser revistos
Ivan Martínez-Vargas
A rede de atenção básica, considerada a porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS) e alvo do decreto revogado pelo presidente Jair Bolsonaro, é operada na maior parte das vezes pelos governos municipais, mas já existem parcerias com a iniciativa privada para administrar áreas administrativas. Em duas capitais, a iniciativa privada já constrói e gerencia unidades. Após reações e críticas de que o governo estaria buscando a privatização do SUS, o presidente voltou atrás na quarta-feira, 23, uma medida que colocava as unidades básicas de saúde (UBSs) no escopo de interesse do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI).
O anúncio da revogação foi feita na tentativa de evitar uma onda de repercussão negativa sobre a medida feita pelo Ministério da economia sem a anuência da Saúde. O presidente publicou em suas redes sociais, sob o título "O SUS e sua falsa privatização", uma justificativa à medida afirmando que o país tem 4 mil UBS e 168 Unidades de Pronto Atendimento (UPA) inacabadas. O que o presidente não explicou é que, mesmo sem o projeto a medida já existe em outras cidades. Duas impostante capitais do país, Belo Horizonte (MG) e Manaus (AM) já tem parcerias ativas. "É preciso desinfantilizar esse debate, privatização não é boa ou ruim em si. Depende da qualidade dos estudos que embasaram o projeto, da modelagem do edital, das cláusulas de desempenho para que o operador cumpra", diz Sandro Cabral, professor de políticas públicas do Insper.
Cabral afirma que as experiências já existentes demonstram que é possível fazer bons projetos de parcerias público-privadas (PPP), inclusive na área da atenção primária de baixa complexidade. "No caso dos postos de saúde, é preciso ter algum desenho de projeto que permita que o operador privado crie escala na prestação dos serviços. Não é incomum, por exemplo, que médicos no sistema público entreguem menos horas do que as contratadas. Há espaço para melhoria de gestão, além de potenciais economias e sinergias. Os contratos podem ter cláusulas de desempenho, inclusive", diz.
Na mineira o acordo foi firmado em 2016, mas só no ano passado começou a andar. O projeto de Belo Horizonte estima a construção de 40 unidades básicas de saúde até 2022 ao custo de R$ 215 milhões. O contrato prevê que a concessionária, a PSE Saúde BH, seja responsável também por serviços como limpeza e conservação, manutenção predial e engenharia clínica. A atenção médica continuará sendo de responsabilidade da prefeitura. Lucas Sant’Anna, sócio do escritório Machado Meyer que atuou no desenho da PPP na capital mineira. Ele diz que o marco legal brasileiro já permite a estruturação de projetos do tipo, inclusive com a prestação de serviços médicos. “Hoje já é comum que UBSs tenham serviços como limpeza e coleta de lixo terceirizados por meio de pequenas licitações. É possível e viável se pensar em uma PPP para cuidar desses serviços de maneira mais estruturada. Trocam-se os pequenos contratos por maiores, com ganho de escala”, diz.
O advogado traça paralelos entre as atuações das PPPs na Saúde com as feitas, hoje, pelas organizações sociais (OSs). Segundo ele, é possível combinar a concessão médica com a de serviços de infraestrutura no mesmo contrato. "Já existem muitos contratos privados com Organizações de Saúde (as OS) que delegam às entidades a operação de hospitais, por exemplo. A diferença é que as OS não fazem investimentos, concentram-se na operação de determinada unidade de saúde, não podem contratar financiamentos, não tem capital. Na PPP, o operador tem margem de lucro, e faz investimento”.
O modelo ideal para financiar PPP do tipo que incluam a gestão dos serviços médicos devem prever a complementação, pelos governos, dos repasses já feitos pelo SUS, de acordo com o advogado. O setor privado constrói a unidade e recebe essa complementação. "Isso também não é novo. Hospitais podem ser construídos com recursos de tesouros estaduais, e mantidos em parte com recursos do SUS, com complementações de outros entes federativos. Quando o governo federal diz que vai estudar PPPs para operar UBSs, não deve ser apenas com recursos da tabela SUS, mas sim com previsão de investimentos com recursos do Tesouro”.
No caso de Belo Horizonte, o contrato da PPP só começou a ser executado em 2019 porque a prefeitura não apresentou garantias de que tinha condições de remunerar o parceiro privado, segundo João Paulo Pessoa, sócio do escritório Toledo&Marchetti. A licitação foi vencida pelo consórcio liderado por uma subsidiária da Odebrecht. Em dezembro de 2019, no entanto, a empresa transferiu 92,78% de sua participação acionária para outra empresa, a Transportes Pesados Minas S.A. "Como esse tipo de serviço é uma concessão administrativa, em que não existe cobrança de tarifa nenhuma ao público, a empresa privada fica dependente da contraprestação pública. No caso de Belo Horizonte, o poder público demorou para apresentar as garantias de que poderia arcar com o pagamento", diz Pessoa. Além da redução do número de unidades, também foram retirados itens que constavam no contrato original, como a obrigatoriedade de a concessionária fazer o serviço de portaria das UBSs.
Em Manaus, o contrato foi assinado em 2012 com duração prevista até 2021 e previa a manutenção e a construção de UBSs. Em 2016, houve um acordo dos concessionários com a prefeitura para reduzir a contraprestação do poder público. Agora, um novo aditivo está em discussão. Para Luís Antônio de Souza, sócio-fundador do escritório Souza, Mello e Torres, a operação de postos de saúde tem pouca atratividade para investidores. "Parece mais ser uma discussão ideológica do que de fato de racionalização da saúde. O atendimento básico de saúde é um serviço pequeno pela receita que geraria, pela contrapartida que o privado poderia ter. Ao incluí-los numa PPP, é preciso criar metas objetivas para enxugar eventuais perdas no sistema, afirma.
Mirócles Véras, presidente da confederação das Santas Casas (CMB), diz que as entidades filantrópicas privadas que atuam administrando concessões na área da saúde se concentram principalmente na gestão de hospitais de alta e média complexidade. Para Véras, qualquer discussão sobre ampliar a participação privada na atenção básica demanda aumento dos valores pagos pelo SUS pelos procedimentos realizados pelos operadores na rede pública. "A preocupação prioritária deveria ser financiamento. A tabela SUS está entre 40% a 60% abaixo do custo, a depender do procedimento. Os hospitais (operados pelas Santas Casas) são deficitários. É preciso discutir formas de remuneração dos serviços via PPPs”.
Na maioria das cidades brasileiras a administração da saúde básica é feita pelos governos municipais, quem a constituição delega esta função. Isso ocorre inclusive nos municípios do estado do Rio de Janeiro. A capital, entretanto, tem um modelo diferente, o das Organizações Sociais, em que a gestão é compartilhada com o município. O modelo foi regulamentado na gestão do ex-prefeito Eduardo Paes (DEM). Uma lei municipal, promulgada em 2009, previa a administração de unidades de saúde, incluindo as de atenção primária, e de hospitais. Diz a lei: “As Organizações Sociais cujas atividades sejam dirigidas à saúde poderão atuar exclusivamente em unidades de saúde criadas a partir da entrada em vigor desta Lei, no Hospital Municipal Ronaldo Gazolla e nos equipamentos destinados ao Programa de Saúde da Família”.
Além de Saúde, também foram formalizadas a atuação das organizações em setores como meio ambiente, ensino e cultura, por exemplo. Uma das diferenças com as PPPs é que, juridicamente, as OSs não podem ter lucro, e as unidades continuam sendo do poder público. Como parte de suas atividades, as OSs ficam responsáveis pela contratação de pessoal, sem a necessidade de concurso público, de serviços e de fornecedores, mas devem, em tese, prestar contas à prefeitura. O modelo, explica o sanitarista Leonardo Mattos, pesquisador do IESC/UFRJ, foi escolhido, à época, para suprir uma demanda municipal. Segundo ele, nos anos 2000, o município não cobria nem 5% do território com serviços de saúde primária. Mas a implementação das OSs, segundo ele, mostrou-se “insustentável”. "Em primeiro lugar, o controle da ação das OSs nunca foi implementado de fato. Ela tem poder para fazer o que quer, Tornou-se um modelo caro, que dá pouca estabilidade, o que é um problema especialmente difícil na atenção primária, em que se precisa conhecer e acompanhar o paciente por muitos anos", argumenta Mattos. "Há um problema orçamentário e fiscal da prefeitura e do próprio modelo, que é difícil de controlar e suscetível à corrupção”, complementa.
O modelo do Rio não se configura uma Parceria Público-Privada (PPP), o que seria a proposta a ser estudada pelo Governo Federal. Segundo Mattos, pelo pouco que foi compreendido do Decreto revogado, não há modelo semelhante ao proposto em todo o país. E o caso carioca não se assemelha a ele justamente por não poder gerar lucro às organizações que administram as unidades e por elas continuarem sendo responsabilidade dos governos.
(Época - 02/11/2020)