William
Maia | São Paulo
Nas
próximas semanas, em meio a debates sobre redução da maioridade penal, ajuste
fiscal e indicação do advogado Luiz Edson Fachin para o Supremo Tribunal
Federal (STF), o Congresso Nacional vai se debruçar ainda sobre o futebol. A
pergunta é: cabe ao governo intervir na gestão dos endividados clubes e
federações?
Para o
advogado Ivandro Maciel Sanchez Junior, a resposta é um inequívoco sim. "Por que o governo tem que intervir? Porque o setor pede mais uma vez,
desesperadamente, que lhe parcelem suas dívidas. Esse fato é uma prova de que
eles não conseguiram se autorregulamentar", afirma Sanchez, que é sócio
da área de Esportes e Entretenimento do Machado, Meyer, Sendacz e Opice
Advogados.
Segundo
o especialista, que presta serviço para clubes como Corinthians e Atlético‐PR,
não procede a alegação da CBF e de alguns clubes e federações de que a MP 671,
assinada pela presidente Dilma Rousseff, fere a autonomia dos clubes e por isso
seria inconstitucional. "A MP apenas estabelece requisitos que precisam ser
observados pelos clubes que quiserem, voluntariamente, participar do programa
de reparcelamento concedido pelo governo. Nenhum clube é obrigado a se
beneficiar desse programa, chamado PROFUT", acrescenta.
Dentre
as medidas previstas pela MP, estão o fim da reeleição indefinida de dirigentes
em clubes e federações, controle de gastos e receitas, e responsabilização
individual dos cartolas por atos lesivos aos clubes.
Nessa
entrevista, Sanchez também se opõe a uma emenda à MP que pretende
transformar os clubes em empresas. "Não se pode confundir gestão de qualidade e
boa governança com o regime jurídico da entidade. Os três maiores clubes do
futebol mundial hoje, Real Madrid, Barcelona e Bayern de Munique, são
sociedades civis sem fins lucrativos. A finalidade principal de um clube de
futebol não é dar lucro, é conquistar títulos", define.
Como
o sr. avalia a MP do Futebol editada pelo governo e que agora está em debate no
Congresso?
Avalio
como bastante positiva para o futebol brasileiro. A história recente do nosso
futebol mostra que as entidades de prática desportiva, clubes, federações
estaduais e confederação brasileira, não conseguiram se autorregulamentar de
uma forma eficiente. Tanto é verdade que essas entidades estão altamente endividadas
em relação a tributos federais. Por isso os clubes procuraram o governo para
tentar reparcelar essas dívidas tributárias, que em alguns casos, são
gigantescas. Nos últimos anos nós tivemos uma série de programas de
reparcelamento em prol dos clubes, como a Timemania, que resolveram apenas
parcialmente o passado das dívidas tributárias, mas não provocaram nenhuma
mudança de comportamento dos clubes, seja no pagamento dos tributos, seja no
modelo de gestão dali para a frente. O que o governo fez agora foi introduzir
não só um novo reparcelamento, mas também uma série de regras de boa
governança, caso eles queiram aderir a esse programa.
A
medida, então, atendeu a uma demanda dos clubes?
A
demanda desesperada dos clubes era o reparcelamento, porque muitos deles não
conseguem mais conviver com essas dívidas tributárias. Têm verbas e bens
penhorados pela Justiça, por exemplo. É uma situação que está sufocando os
clubes. Só que agora o governo exige contrapartida, porque com base no
histórico recente ele tem toda a legitimidade de pensar que conceder mais um
simples programa de reparcelamento não vai induzir os clubes a melhorar em nada
as suas gestões. A MP procurou induzir os clubes a modificarem seus estatutos
de modo a contemplar regras de governança corporativa que outros setores da
sociedade já possuem.
Apesar
disso, a medida têm sido criticada por clubes e federações, que alegam se
tratar de um intervenção do Estado em atividades privadas. Alguns dizem,
inclusive, que seria inconstitucional.
Não é inconstitucional
porque o mecanismo utilizado pela medida provisória é indireto. Existe um
dispositivo na Constituição (217, inciso I) que preserva a autonomia das
associações civis sem fins lucrativos, que é a forma como quase todos os clubes
se organizam no país. As entidades de organização do desporto, nome que a Lei
Pelé dá às federações e confederações, também se organizam dessa forma. É com
base nesse artigo que os clubes e federações historicamente reagem a qualquer
tipo de tentativa de regulamentação estatal no futebol, sob a alegação de que
isso feriria sua autonomia. Acontece que a MP apenas estabelece requisitos que
precisam ser observados pelos clubes que quiserem, voluntariamente, participar
do programa de reparcelamento concedido pelo governo. Nenhum clube é obrigado a
se beneficiar desse programa, chamado PROFUT. Se quiser, e apenas se quiser, é
obrigado a seguir algumas regras.
Quais
são elas?
A regra
que até o momento têm causado mais discussão, e que no meu modo de ver não
deveria ser o foco dos debates, é a proibição da reeleição indefinida de
dirigentes nos clubes e federações. A MP exige dos clubes participantes do
programa que alterem seus estatutos para estabelecer mandatos de no máximo
quatro anos, permitindo apenas uma reeleição subsequente, repetindo a regra
para as eleições a cargos do Poder Executivo. Essa questão é muito relevante
sobretudo nas federações estaduais, que via de regra são feudos políticos. Para
se ter uma ideia, a federação de Santa Catarina tem o mesmo presidente há 31
anos.
Mas
as federações não perderam força com esvaziamento de seus campeonatos estaduais
e regionais?
Sim, mas
elas continuam relevantes politicamente, porque são os seus 27 presidentes,
acompanhados dos presidentes dos 20 clubes da Série A do Campeonato Brasileiro,
que compõem o colégio eleitoral que define o presidente da CBF. Não há voto
qualitativo. O voto do presidente da Federação do Piauí tem o mesmo peso do
voto do presidente do Flamengo ou do Corinthians. Isso faz com que a CBF seja
sensível às demandas das federações estaduais. E elas têm levado esse pleito
contra o veto à reeleição indefinida ao presidente recém‐eleito da CBF (Marco
Polo Del Nero).
Qual
a realidade dos clubes?
No
âmbito dos clubes há uma tendência de rotatividade maior. O estatuto do
Corinthians, por exemplo, desde 2008 sequer permite a reeleição. No Flamengo, é
possível apenas uma reeleição. Hoje já não há exemplos, como houve no passado,
de dirigentes que se perpetuam no poder indefinidamente. Os próprios clubes
avaliam que essa alternância de poder é saudável.
Que
outras novidades a MP traz?
A MP é
muito mais que a questão da reeleição dos dirigentes, ela é uma espécie de
paralelo à Lei de Responsabilidade Fiscal. O texto impede, por exemplo, que os
clubes antecipem receitas de exercícios futuros. Por que isso? Era muito comum
- e ainda é em alguns clubes - que o presidente, ao chegar ao último ano de
mandato, quisesse ganhar títulos, para deixar a sua marca na história do clube.
Para isso, ele antecipava uma série de receitas, contratava diversos jogadores
para montar um esquadrão - o que não é necessariamente uma garantia de título -,
e comprometia a gestão seguinte, que assumia uma terra arrasada.
As
receitas a que o sr. se refere são os direitos de transmissão de TV?
Esse é o
caso típico. Há clubes que já anteciparam no começo de 2015 as receitas de
televisão de 2018. A MP corta essa possibilidade, muito positivamente. Além
disso, o texto determina que o clube pode gastar com o seu departamento de
futebol profissional, no máximo, 70% das receitas. Seria óbvio dizer que o
clube deve gastar menos do que arrecada, mas não é. Sobretudo porque a
finalidade do clube não é gerar superávit ou lucro, mas sim, ganhar. Com isso,
os clubes historicamente gastam muito além do que arrecadam, o que acaba
gerando um círculo vicioso de dívidas, altos juros bancários, atraso de
pagamentos de salários e direitos de imagem…
E
calote de tributos.
Sim. E é
por isso que o governo tem total interesse em impor esse limite de 70% de
gastos, porque ele é um credor. O governo está topando postergar essa dívida
por 120 meses ou até 204 meses, em condições extremamente favoráveis aos
devedores. Quem quiser aderir a essas condições, vai ter de se adequar às
regras. Vai ter de apresentar demonstrações financeiras transparentes; vai ter
de garantir autonomia estatutária a um conselho fiscal; vai ter que contemplar
no estatuto a responsabilização dos dirigentes em caso de atos contrários aos
interesses das entidades; entre outras coisas bastante razoáveis, que qualquer
estatuto já deveria ter.
Como
funciona essa responsabilização pessoal dos dirigentes?
É outro
ponto que gera bastante resistências. Mas penso que se o estatuto do clube
souber reproduzir de uma forma razoável essa regra, isso deve ser o suficiente
para tranquilizar o bom dirigente. Até porque já é uma hipótese prevista no
Código Civil. A prática de atos alheios ao interesse de qualquer pessoa
jurídica por seus dirigentes já é passível de responsabilização pessoal pela
legislação vigente. E não se trata de punir um ato bem intencionado que tenha
gerado maus resultados, como a contratação de um jogador com alto investimento,
mas que não rende o esperado no campo.
A
contratação de Alexandre Pato pelo Corinthians, por exemplo.
Sim, é
um bom exemplo. Esse caso não seria passível de qualquer responsabilização
pessoal do dirigente, porque não houve proveito próprio algum de nenhum
dirigente envolvido nessa transação. Pelo contrário, foi uma decisão tomada
pensando no melhor interesse da entidade, mas que se mostrou desastrosa do
ponto de vista esportivo. Isso é algo que pode acontecer em qualquer segmento
de atividade. Você contrata um profissional achando que ele vai performar de
uma forma e aquilo pode não acontecer. A hipótese de responsabilização pessoal
seria cabível em caso de desvio de recursos, contratação de empresas de
familiares etc.. Ou seja, desvios de finalidade que envolvam, sobretudo, o
interesse pessoal do dirigente em detrimento do interesse da entidade.
Críticos
da MP também acusam o governo de tentar intervir na CBF, que não tem dívida
tributária. O que pensa a respeito?
A MP, no
seu artigo 5o, diz que as entidades esportivas profissionais de futebol (os
clubes) que aderirem ao PROFUT somente poderão disputar competições organizadas
por entidades de administração do desporto (federações e confederações) ou liga
que seguirem os mesmos requisitos de governança a que os clubes estão sujeitos.
É uma medida muito positiva, mas que está gerando uma série de disputas e
pressões no Congresso, entre os clubes que precisam desesperadamente do
programa de parcelamento, o governo que cobra as contrapartidas, e a CBF, que,
pressionada pelas federações estaduais, não quer aceitar essas regras.
Essas
regras poderão trazer repercussões referentes ao passado dos clubes que tenham
algum esqueleto no armário?
Não. A
MP prevê um prazo de adaptação às novas regras, que serão aplicadas dali por
diante.
A
transformação dos clubes em empresas já foi apontada como uma saída para a
profissionalização do futebol. A MP não indicou esse caminho, mas já há emendas
apresentadas no Congresso que concedem vantagens tributárias aos clubes que
fizerem essa opção. Considera uma boa iniciativa?
Não, não
gosto dessa alternativa. Não se pode confundir gestão de qualidade e boa
governança com o regime jurídico da entidade. Você pode ter uma associação
civil sem fins lucrativos com uma gestão altamente profissional e uma empresa
constituída como SA ou LTDA e uma gestão desorganizada e ineficiente. Os três
maiores clubes do futebol mundial hoje, Real Madrid, Barcelona e Bayern de
Munique, são sociedades civis sem fins lucrativos, e disputam contra os clubes
ingleses, que, organizados como empresas, não conseguem atingir seu nível de
excelência, seja esportiva, seja de gestão. A finalidade principal de um clube
de futebol não é dar lucro, é conquistar títulos. Às vezes, ser vice campeão de
um torneio como a Libertadores da América é mais lucrativo do que ser campeão,
porque o campeão tem um custo maior com salários e premiações, o chamado "bicho". Mas o que vale mais para um clube? Ter lucro como uma empresa ou
ganhar títulos?
Como
responder a quem diz que o governo tem mais com o que se preocupar do que
interferir no futebol, que é uma atividade privada?
Todo
segmento de atividade que não consegue atingir um padrão de qualidade e gestão
se autorregulamentando, abre caminho para uma tentativa de indução de padrões
de governança pela via legislativa. Por que o governo tem que intervir? Porque
o setor pede mais uma vez, desesperadamente, que lhe parcelem suas dívidas.
Esse fato é uma prova de que eles não conseguiram se autorregulamentar. O
futebol é uma atividade econômica extremamente importante, não só enquanto
cadeia direta, mas também do ponto de vista do turismo, da construção da imagem
do país no exterior. A camisa da seleção brasileira é muito mais conhecida
internacionalmente que a nossa bandeira. O futebol brasileiro é um bem público
por si só e cabe, sim, ao governo tratá‐lo com carinho.Jota - 23.04.2015