O avanço tecnológico e a modernização da sociedade fez com que as pessoas deixassem de ter os seus patrimônios compostos única e exclusivamente por imóveis, ativos financeiros e veículos. Os bens digitais também passaram a fazer parte do universo patrimonial.

Não é incomum identificar atualmente no patrimônio das pessoas, além dos bens tradicionais, outros bens imateriais como criptoativos, NFTs (Non-Fungible Token) e contas em plataformas digitais.

Há ainda os profissionais digitais, que monetizam perfis em redes sociais e canais em plataformas, com a exibição de conteúdo, propaganda, entre outros. Devido ao grande número de seguidores, esses profissionais conseguem obter, com seus perfis/canais, um patrimônio relevante.

A existência cada vez maior desses bens digitais levanta questões sobre sua sucessão, relativas à transmissibilidade desse patrimônio ou à possibilidade/permissão de os herdeiros terem acesso a esse patrimônio. Isso porque a legislação atual carece de regulamentação específica, criando um cenário de incerteza, que exige soluções práticas para garantir a sucessão eficaz desses bens, enquanto não houver atualização legislativa sobre o tema.

O tratamento da sucessão de ativos digitais na legislação brasileira

O Código Civil em vigor (Lei 10.406/02) não trata diretamente da sucessão de ativos digitais, até mesmo porque, quando entrou em vigor, em 2002, a tecnologia não existia nos moldes atuais e muitos dos bens digitais de hoje sequer existiam.

Atualmente, a premissa geral sobre sucessão regulamentada no Código Civil é aplicada também aos bens digitais por falta de regulamentação específica, o que gera algumas lacunas e dificuldades.

O art. 1.784 dispõe que, aberta a sucessão, ou seja, com o falecimento, a herança transmite-se, desde logo aos herdeiros. Trata-se do princípio da saisine, pelo qual a transmissão dos bens aos herdeiros é automática, não podendo o patrimônio ficar acéfalo, sem titular.

Entretanto, os ativos digitais têm características particulares que dificultam essa transmissão automática. Alguns exemplos:

  • Criptoativos: a ausência de uma entidade central reguladora impede o acesso aos bens sem a chave privada do titular. Diferentemente de contas bancárias, que podem ser acessadas por meio de decisões judiciais, criptoativos podem ser perdidos para sempre caso as chaves privadas não sejam conhecidas.
  • Contas em plataformas digitais: redes sociais, serviços de e-mail e plataformas de armazenamento têm políticas próprias sobre herança digital. Algumas permitem a nomeação de um contato herdeiro, enquanto outras proíbem a transferência da conta para preservar a intimidade da pessoa.
  • NFTs e outros bens digitais: embora registráveis em blockchain, sua transferência pode enfrentar barreiras semelhantes às das criptomoedas.

A jurisprudência brasileira ainda é incipiente e apresenta entendimentos divergentes sobre o tema. Em alguns casos, juízes têm reconhecido o direito de herdeiros acessarem contas digitais de falecidos, mas a ausência de uma regulamentação específica gera insegurança jurídica.

Lições da regulamentação internacional: MiCA e Ufadaa

No cenário internacional, algumas jurisdições avançaram na regulamentação da sucessão de ativos digitais:

  • MiCA (Markets in Crypto-Assets, União Europeia): embora não trate especificamente de sucessão, estabelece regras para custódia e transferência de criptoativos, e pode servir de base para regulamentações futuras sobre sucessão digital.
  • Ufadaa (Uniform Fiduciary Access to Digital Assets Act, EUA): assegura que, após o falecimento do titular, o respectivo herdeiro pode administrar os ativos digitais, desde que previsto em testamento ou documentação legal específica.

Esses modelos ilustram adaptações das normas ou mesmo a importância de prever normativas específicas, para evitar a perda de bens digitais após a morte do titular. Essas regulamentações demonstram uma preocupação crescente com a proteção e transmissão desses ativos no contexto digital.

Estratégias jurídicas para garantir a sucessão de criptoativos

Como já mencionado, devido à ausência de regulamentação específica no ordenamento jurídico brasileiro, algumas estratégias podem ser adotadas para assegurar a sucessão de ativos digitais, visando proporcionar maior segurança ao titular e aos seus herdeiros:

  • Gestão prévia das chaves privadas: o armazenamento seguro das chaves privadas, seja em cofres digitais ou com terceiros confiáveis, pode ser essencial. O uso de multisig wallets (carteiras com múltiplas assinaturas) pode facilitar a transferência de criptoativos aos herdeiros.
  • Nomeação de herdeiros em exchanges: algumas corretoras já permitem que usuários indiquem herdeiros, o que reduz o risco de perda do patrimônio digital.
  • Testamentos: A inclusão de instruções detalhadas sobre ativos digitais em testamentos pode minimizar disputas e facilitar a sucessão. Entretanto, o testamento público pode não ser a melhor opção para chaves privadas, devido ao risco de exposição.

Reforma do Código Civil

É importante mencionar, que foi apresentada recentemente ao Senado Federal, por meio do Projeto de Lei 4/25, uma proposta de reforma do Código Civil, que trata amplamente dos bens digitais e sua transmissão.

O texto sugere a possibilidade de incluir bens digitais na herança, desde que tenham valor economicamente considerável, além de definir o que seriam considerados bens digitais:

“Compreende-se como bens digitais, o patrimônio intangível do falecido, abrangendo, entre outros, senhas, dados financeiros, perfis de redes sociais, contas, arquivos de conversas, vídeos e fotos, arquivos de outra natureza, pontuação em programas de recompensa ou incentivo e qualquer conteúdo de natureza econômica, armazenado ou acumulado em ambiente virtual, de titularidade do autor da herança”.

O texto da reforma propõe que os herdeiros sejam proibidos de acessar as mensagens privadas do autor da herança armazenadas em ambiente virtual, salvo expressa disposição de última vontade.

Por fim, caberia ao inventariante (ou qualquer herdeiro) informar ao juízo do inventário ou fazer constar na escritura pública a existência de bens digitais de titularidade do falecido.

Se aprovado, portanto, teremos uma regulamentação mais específica sobre o tema, capaz de direcionar de forma mais segura a sucessão dos bens digitais.

Conclusão

A sucessão de ativos digitais é um desafio jurídico crescente, que exige adaptação do direito sucessório tradicional. A ausência de regulamentação específica no Brasil contrasta com avanços em outras jurisdições, como a União Europeia e os Estados Unidos. Até que haja um marco legal específico, é essencial que titulares de ativos digitais adotem estratégias de planejamento sucessório para garantir a transmissão segura de seu patrimônio digital ou ao menos mitigar os riscos hoje existentes.

A regulamentação futura deve equilibrar segurança jurídica, privacidade e inovação, garantindo que herdeiros possam acessar bens digitais sem comprometer os princípios fundamentais do direito sucessório e da proteção de dados.