A Lava-Jato agora é internacional

Fabiane Stefano

São Paulo - Ao completar dois anos em março, a Operação Lava-Jato contabilizava números impressionantes: foram 484 pedidos de busca e apreensão, mais de 100 mandados de prisão e 93 condenações - que ao todo somam 990 anos de prisão.

Em suas 27 fases até 4 de abril, a operação conduzida pelo juiz  conseguiu selar 49 acordos de delação premiada de pessoas físicas e cinco acordos de leniên­cia de empresas. Outros ainda estão sendo costurados. Até agora, os crimes denunciados envolvem o pagamento de 6,4 bilhões de reais em propinas.

O esquema de distribuição de suborno na Petrobras é considerado o maior caso de corrupção que veio à tona no Brasil. E pode bater outro recorde. A Lava-Jato pode levar a estatal brasileira a pagar a maior multa do mundo relacionada a crimes corporativos internacionais.

Advogados estrangeiros especializados em crimes de colarinho branco acreditam que o escândalo da Petrobras deverá superar facilmente o caso da alemã Siemens, multada em 1,6 bilhão de dólares nos Estados Unidos e na Alemanha em 2008 por pagar propinas a agentes públicos em diversos países — o maior valor até hoje. 

Mas o petrolão vai além. Atinge uma série de fornecedores da Petrobras. Como as investigações ainda estão em curso, e é provável que novos elos no esquema de corrupção ainda venham a surgir, o caso deve continuar crescendo. No domingo 3 de abril, começaram a vir a público as descobertas da Panama Papers, uma investigação conjunta feita por 376 jornalistas de 76 países, incluindo o Brasil.

Tomando como ponto de partida 11,5 milhões de registros do escritório de advocacia panamenho Mossack Fonseca, começa a ser destrinchada uma rede global de corrupção e lavagem de dinheiro.

No que se refere ao Brasil, os documentos apontam 107 empresas offshore criadas por 57 indivíduos e empresas investigados na Lava-Jato — em princípio, são informações que alimentam a operação policial brasileira. A Panama Papers é mais uma evidência de que, hoje, o combate à corrupção não é delimitado pelas fronteiras de onde os crimes são praticados.

Países como Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Chile e Suíça criaram leis que impõem penalidades a empresas estrangeiras que subornam, formam cartel ou lavam dinheiro em outras jurisdições — basta que tenham alguma ligação com sua economia, como uma filial ou ações negociadas em sua bolsa de valores.

“Usar o sistema financeiro ou a moeda americana já é suficiente para estar exposto à legislação anticorrupção dos Estados Unidos”, diz o advogado Richard Smith, ex-chefe da seção de fraudes corporativas do Departamento de Justiça americano, conhecido pela sigla DOJ. Ou seja, quase todas as empresas envolvidas na Lava-Jato correm o risco de ser processadas no exterior.

Neste exato momento, algumas dezenas de advogados americanos, em parceria com colegas de escritórios brasileiros, circulam entre São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e, obviamente, Curitiba em conversas com clientes, promotores e procuradores.

Eles fazem parte de uma força-tarefa privada que já está atuando — ou se preparando — para responder aos questionamentos do DOJ e da Comissão de Valores Mobiliários americana, cujas iniciais em inglês são SEC.

Cabe a esses dois órgãos a aplicação da lei anticorrupção dos Estados Unidos, criada em 1977 e turbinada em 1997 com a convenção da OCDE, o clube dos 34 países mais desenvolvidos, que trata do suborno a funcionários públicos no exterior. Juntos, DOJ e SEC não têm mais do que uma centena de pessoas para caçar corruptos mundo afora.

Por isso, diante de indícios de crimes corporativos, o governo americano notifica as empresas suspeitas a cooperar com as autoridades do país. Quem não colabora fica sujeito a investigações do FBI — a polícia federal americana — e a sanções como o bloqueio de contas bancárias.

Na prática, o que os Estados Unidos fazem é terceirizar para os escritórios de advocacia as investigações internas nas empresas — ao custo de milhões de dólares. Maior rede varejista do mundo, o Walmart vem sendo processado pelo suposto pagamento de 24 milhões de dólares em propinas no México. Já gastou 650 milhões de dólares com advogados desde 2012, ano em que o caso foi revelado.

E a fase das multas ainda nem chegou. Pelo menos três empresas comprometidas na Lava-Jato terão de responder à SEC e ao DOJ: Petrobras, Braskem e Eletrobras. As três negociam papéis na bolsa de Nova York e, por isso, rapidamente, entraram no radar das autoridades americanas.

A Petrobras, notificada em novembro de 2014, está em fase de investigação interna e é representada pelo escritório Gibson, Dunn & Crut­cher, de Washington, e pelo Trench Rossi e Watanabe, de São Paulo. A estratégia da empresa é assumir a posição de vítima para tentar diminuir as multas que virão.

Juntamente com o Ministério Público Federal brasileiro, a Petrobras é coautora da ação de improbidade administrativa contra as empreiteiras e seus ex-executivos apontados como responsáveis por delitos.

Obviamente, a Petrobras é a maior prejudicada pelos desvios, mas isso não a livra da responsabilidade por ter tido altos funcionários envolvidos até o pescoço e por ter controles internos frágeis que permitiram o roubo de milhões de dólares de seus cofres e impuseram perdas aos acionistas.

Bancar a vítima é essencial para a empresa tentar reduzir os estragos das ações coletivas movidas por investidores estrangeiros. Até dezembro, 28 ações coletivas haviam sido ajuizadas na Corte federal de Nova York. O julgamento conjunto dos processos está marcado para 19 de setembro. Em seu último balanço, a Petrobras alegou não ser capaz de estimar a perda potencial nas ações.

“A companhia poderá ter de pagar valores substanciais, os quais poderão ter um efeito material adverso em sua condição financeira, em seus resultados ou em seu fluxo de caixa consolidados em determinado período.” Tradução: a conta vai ser salgada. Já a petroquímica Braskem se adiantou e informou às autoridades americanas que fora citada em duas delações premiadas.

O ex-diretor de abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa e o doleiro Alberto Youssef afirmaram que a Braskem pagou propina para comprar mais barato da Petrobras a nafta, sua principal matéria-prima. O arranjo teria durado de 2009 a 2014.

Quando o teor das delações foi a público em março de 2015, a Braskem procurou o DOJ e a SEC para propor uma investigação interna e apurar se houve alguma violação da legislação anticorrupção dos Estados Unidos. O caso está nas mãos dos escritórios Baker McKenzie, de Washington, e Machado, Meyer, Sendacz e Opice, de São Paulo.

Nessa fase, os advogados precisam mostrar relatórios regulares sobre o andar da investigação, como o número de provas coletadas. Já foram gastas algumas dezenas de milhões de reais com o procedimento. A investigação deve levar dois anos. Se comprovadas as irregularidades, além de multas, a Braskem poderá ficar sob a vigia das autoridades americanas.

“Passado pouco mais de um ano do início do procedimento, a Braskem tem se colocado à disposição dos escritórios de advocacia de forma a preencher os requisitos da investigação, fornecendo arquivos, dados, relatórios, entre outras informações solicitadas”, respondeu a empresa por meio de nota. Estima-se que a fase internacional da Lava-Jato leve uma década para ser concluída.

Tradicionalmente, os acordos que envolvem o Departamento de Justiça americano determinam que a empresa que é alvo de investigação — no caso brasileiro, a Petrobras — coopere subsidiando as autoridades com evidências para outros processos. Foi o que ocorreu com a empresa de logística suíça Panalpina.

Ela admitiu ter pago 27 milhões de dólares em propinas para facilitar serviços a seus clientes do setor de petróleo, principalmente na Nigéria. Ao fim de sete anos de investigação, os 23 clientes da Panalpina foram processados também, incluindo a anglo-holandesa Shell.

Enquanto a situação das empresas que operam no mercado de capitais americano é clara, as demais envolvidas na Lava-Jato tentam entender se estão ou não na mira dos xerifes estrangeiros. Gerson Almada, dono da Engevix, disse à Polícia Federal que pagou 120 milhões de dólares ao lobista Milton Pascowitch na negociação de contratos de construção dos cascos de oito plataformas para a Petrobras.

Como o pagamento foi feito em dólares, a empresa pode ser acionada no exterior. Segundo EXAME apurou, a construtora Engevix consultou advogados nos Estados Unidos para saber como fica sua situação perante o DOJ (procurada, a Engevix nega ter feito contato com advogados nos Estados Unidos).

A construtora Andrade Gutierrez, que fez um acordo de leniência de 1 bilhão de reais, embora não tenha operações nem títulos negociados nos Estados Unidos, pode ser investigada por lá. Os advogados consultados por EXAME afirmam que as autoridades americanas utilizam teorias cada vez mais amplas sobre responsabilidade em casos de corrupção.

“Como a Petrobras é listada na bolsa de Nova York, fornecedores que ajudaram um funcionário da estatal a cometer um crime estão sob a jurisdição americana”, diz o advogado Andrew Haynes, que cuida do escritório americano Norton Rosen Fulbright no Rio de Janeiro.

A profusão de acordos de delação premiada e de leniência que estão sendo negociados com o Ministério Público Federal dá base para que outras empresas sejam convocadas a prestar esclarecimentos lá fora.

“A lógica das autoridades americanas é que, se uma empresa praticou um crime num país, é possível que ela esteja fazendo o mesmo nos Estados Unidos”, diz o advogado Jorge Nemr, especialista em direito internacional do escritório Leite, Tosto e Barros Advogados.

A próxima empresa brasileira a entrar no radar das autoridades americanas deve ser a construtora Odebrecht, que, segundo palavras da própria empresa, está negociando sua “colaboração definitiva” com o Ministério Público.

Uma das construtoras mais enroladas no caso Lava-Jato, a Odebrecht mantém escritórios na Flórida e no Texas e tem uma longa lista de obras de infraestrutura nos Estados Unidos — entre elas a ampliação do aeroporto de Fort Lauderdale, na Flórida. Procurada por EXAME,­ a Odebrecht diz que não foi notificada pelas autoridades americanas e não se manifestará sobre o assunto.

No começo de março, o procurador Patrick Stokes, chefe da seção de fraudes do DOJ, disse, numa conferência na Califórnia sobre crimes de colarinho branco, estar preocupado com o aumento do número de empresas que tentam resolver rapidamente os casos com as autoridades do próprio ­país.

“Empresas que têm exposição à lei americana que já resolveram ou estão em estágio avançado de negociação com outros países não necessariamente estarão isentas de um processo nos Estados Unidos”, disse Stokes, citando situações no Brasil, no Chile e na China. As empresas brasileiras envolvidas no petrolão devem enfrentar um endurecimento da Justiça americana.

Em setembro, o órgão publicou um memorando que indica uma mudança de abordagem na repressão de crimes de colarinho branco. Conhecido como Memorando Yates, de autoria da procuradora Sally Yates, o documento enfatiza que as autoridades devem focar cada vez mais os executivos e os empregados das empresas que cometeram crimes corporativos.

Após quase uma década de intensa caça aos corruptos nos Estados Unidos, começaram a surgir dúvidas se as companhias investigadas não estariam se acostumando com a ideia de que pagar multas milionárias aos órgãos de combate à corrupção faz parte do jogo — e, portanto, seria apenas mais um custo dos negócios.

Agora, as empresas que se comprometerem a cooperar com as investigações — condição para receber descontos nas multas — precisam entregar quem fez o quê nas negociatas para que as pessoas físicas também sejam processadas.

Essa nova abordagem é resultado da chegada, em 2014, da procuradora-geral adjunta Leslie Cald­well, que fez carreira combatendo a máfia em Nova York e liderou o time que processou a empresa de energia Enron por fraudes contábeis e fiscais. Leslie tem insistido que é melhor punir indivíduos do que empresas e acionistas.

“Conheço Leslie Cadwell desde 2002, e a equipe que ela montou na divisão criminal é formada por gente dura, acostumada a lidar com mafiosos do Brooklyn”, diz o advogado Eric Snyder, ex-procurador de Nova York e que acabou de ser contratado pelo escritório Jones Day, de Washington, para atuar em São Paulo.

Para sorte dos envolvidos na Lava-Jato, nossa legislação não permite a extradição de brasileiros. Mas, como o caso Fifa já mostrou, os suspeitos que puserem os pés fora do Brasil podem ser extraditados de países que têm acordo de ­cooperação com os Estados Unidos. Depois de Sergio Moro e companhia, os tiras e os juízes americanos vêm aí para tirar o sono dos malfeitores.

(Exame.com - 01.06.2016)

(Notícia na íntegra)

Fonte: http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/1111/noticias/a-lava-jato-agora-e-internacional