Serviço público mais universalizado do Brasil, presente em 99% das residências, as distribuidoras de energia têm na inadimplência um dos principais desafios de curto prazo com a pandemia do coronavírus. A paralisação da economia diminuiu de forma significativa a capacidade do pagamento de conta de luz por uma fatia expressiva dos consumidores brasileiros, e não apenas dos clientes considerados baixa renda.

Ontem, em uma medida de proteção social, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) determinou a suspensão por 90 dias do corte de energia, mesmo para os clientes inadimplentes. A ação, embora justificada, foi recebida de forma negativa pelo mercado, sobretudo por não prever de imediato a adoção de um mecanismo de compensação financeira pelos prejuízos com o provável aumento da inadimplência - a Aneel fez um apelo para que os consumidores continuem pagando a conta de luz, de modo a manter em 5% a taxa de inadimplência na classe residencial, o patamar atual.

"A Aneel foi otimista ao achar que a inadimplência não vai subir. Esse foi um incentivo ruim", disse o analista para o setor elétrico da XP Investimentos, Gabriel Fonseca.

Segundo ele, a pressão sobre os níveis de inadimplência do setor não virá só dos clientes residenciais, mas também da classe comercial, cujas atividades tiveram de ser paralisadas por força de determinação do poder público para conter o avanço da Covid-19.

Antes mesmo da decisão da Aneel, as distribuidoras já vinham sob forte pressão da classe política para adotar medidas para conter os danos sociais do coronavírus. O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, sugeriu a suspensão do pagamento das contas de serviços públicos no Estado, inclusive a de energia elétrica. O governador de São Paulo, João Doria, solicitou a suspensão dos reajustes de tarifas de energia no estado. E até Minas Gerais, administrada pelo Romeu Zema, do Novo, também adotou uma linha de atuação semelhante, e a Cemig anunciou parcelamento de seis vezes da conta de luz para clientes residenciais e microempresas afetadas pela determinação de paralisação até 30 de abril.

"Vimos também na área da Celpe alguns juízes expedindo mandados de segurança para não cortar o fornecimento para algumas associações empresariais. Os juízes já estão dando liminares contra as distribuidoras", afirmou o sócio da área de energia e recursos naturais do escritório Demarest, Raphael Gomes. Para ele, a jurisprudência é mais favorável aos consumidores do que às distribuidoras em discussões judiciais sobre o corte do fornecimento de energia.

Apostando também na linha de crescimento da inadimplência, a analista para o setor elétrico do Credit Suisse, Carolina Carneiro, estimou que o aumento de 100 pontos base na inadimplência e nas perdas comerciais reduziria a geração de caixa medida pelo Ebitda das empresas entre 10% e 15%, citando como exemplo grupos de energia como Energisa, Equatorial e Neoenergia.

Ao pressionar o nível de alavancagem e o capital de giro das empresas, a analista prevê que o cenário atual ameaça o equilíbrio econômico-financeiro das concessões e a capacidade de investimentos do setor, apontando, assim, a necessidade de adoção de medidas para proteger o balanço das distribuidoras. "Precisamos definitivamente de uma solução para a redução de caixa no curto prazo e as suas consequências", disse.

Caixa

Além da inadimplência, as distribuidoras precisam lidar com outros dois desafios que ameaçam a sustentabilidade financeira do segmento: a sobrecontratação de energia e o risco de redução ou de não pagamento dos contratos de tarifa fio com os consumidores livres. Ontem, ao anunciar a suspensão do corte do fornecimento por 90 dias, a Aneel sinalizou que esses dois temas serão objeto de uma nova rodada de medidas futuramente, mas sem sinalizar um prazo. 

Especificamente sobre os contratos do uso do sistema de distribuição, conhecidos no jargão do setor como demanda contratada, a sócia na área de energia do Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados, Ana Karina, acredita ser mais difícil emplacar a tese de força maior para desobrigar o consumidor livre a pagar a concessionária. "Por ser um mercado regulado, dificilmente um pleito deste vai ser atendido se a Aneel não reconhecer o evento de força maior", disse a especialista.

Ainda assim, há a possibilidade de os consumidores livres solicitarem às distribuidoras uma redução na demanda contratada, situação prevista nas regras do setor, o que poderia ter um impacto no fluxo de caixa das empresas neste momento delicado.


Jornalista: BAHNEMANN, Wellington

(O Estado de S. Paulo online - 30.03.2020)