Em janeiro de 2014 entrou em vigor no Brasil a Lei nº 12.846, a chamada "Lei da Empresa Limpa", que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.
Já havia, anteriormente, previsões legais visando a reprimir atos de corrupção e operações lesivas ao patrimônio público, mas a principal novidade trazida pela nova lei foi atribuir a responsabilidade objetiva (independente de dolo ou culpa) das pessoas jurídicas pelos atos lesivos contra a administração pública.
De fato, a intensificação ao combate à corrupção no Brasil se fazia necessária de maneira urgente, para que nosso país, com a oitava maior economia do mundo, pudesse se equiparar às principais potências econômicas mundiais no que se refere à solidez das instituições públicas e seriedade do ambiente de negócios. Nesse contexto, a Lei da Empresa Limpa foi, inegavelmente, um enorme avanço em suas linhas gerais. No entanto, existem dois aspectos que precisam ser analisados com muita cautela no contexto de investimentos e aquisições de empresas.
O primeiro se refere ao art. 4º, caput, da Lei da Empresa Limpa, que determina que subsistirá a responsabilidade da pessoa jurídica na hipótese de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária. Em outras palavras, a Lei da Empresa Limpa criou a sucessão empresarial por multas e reparação de danos por atos de corrupção cometidos por terceiros, inclusive na gestão dos vendedores de uma determinada empresa ou estabelecimento.
Já o segundo ponto está ligado ao art. 4º, §2º, que determinou a responsabilização automática e solidária às "sociedades controladoras, controladas, coligadas ou, no âmbito do respectivo contrato, as consorciadas".
Em primeiro lugar, cabe precisar o que são sociedades controladoras, controladas, coligadas e consorciadas.
A definição de controle não depende unicamente da posição acionária ou titularidade da maioria das ações, mas sim do poder efetivo de determinar os negócios sociais e eleger a maioria dos administradores. Assim, numa companhia de capital disperso, um acionista que detenha participação acionária relevante (ainda que não represente a maioria do capital social) poderia ser responsabilizado solidariamente pelos atos de corrupção da sociedade investida.
A definição de "coligada" consta em dois diplomas legais brasileiros, e não está claro qual deles a Lei da Empresa Limpa pretendeu utilizar. Pela Lei das Sociedades por Ações é presumida influência significativa quando a investidora for titular de 20% ou mais do capital votante da investida, sem controlá-la".
Já o Código Civil Brasileiro prevê que a sociedade coligada ou filiada é aquela cujo capital outra sociedade participa com 10% ou mais, sem controlá-la.
Em primeira análise, parece que o patamar de "coligada" seria de 20% ou mais para uma coligada constituída sob a forma de sociedade anônima, e 10% ou mais para uma coligada constituída sob a forma de sociedade limitada.
Seja como for, vale destacar a fragilidade que pode surgir, por exemplo, numa situação em que um investidor adquira, privadamente ou em bolsa, um lote acionário relevante, mas que não configure controle: em princípio ele poderia ser responsabilizado solidariamente por atos de corrupção da companhia investida e seus administradores e agentes, independentemente de qualquer envolvimento ou sequer conhecimento de tais atos de corrupção.
No caso das consorciadas, a lei estabeleceu a responsabilidade "no âmbito do respectivo contrato". As fragilidades são evidentes. Nos termos do art. 278 da Lei das Sociedades por Ações, um consórcio não tem personalidade jurídica e é formado, temporariamente, para executar um empreendimento. Por esse motivo, o art 287, §1º, da Lei das Sociedades por Ações estabelece que "cada consorciada responde por suas obrigações do consórcio, sem solidariedade". A Lei da Empresa Limpa, no entanto, parece ter ignorado esse aspecto, estabelecendo a responsabilidade solidária entre consórcio e consorciadas.
A responsabilidade limitada é um princípio fundamental do direito empresarial, permitindo que investidores possam participar de determinados empreendimentos sem expor todo seu patrimônio a risco. Sem tal limitação, muitos empreendimentos não seriam viáveis por não haver capital disponível de empreendedores.
A desconsideração da personalidade jurídica e a responsabilização solidária por atos e obrigações de terceiros devem ser medidas de exceção, utilizadas com muita cautela de acordo com as circunstâncias concretas do caso. Considerando o estágio atual de proliferação de atos de corrupção no Brasil, compreende-se o intuito do legislador ao estabelecer que as pessoas jurídicas envolvidas em atos lesivos contra a administração pública sejam responsabilizadas objetivamente, independente de dolo ou culpa.
No entanto, merece críticas a responsabilidade solidária automática e a responsabilidade por sucessão. Temos visto no Brasil diplomas legais e decisões judiciais que desrespeitam os princípios da responsabilidade limitada e separação patrimonial, com o propósito de desconsiderar indiscriminadamente a personalidade jurídica ou aplicar a responsabilização solidária ao grupo econômico.
O efeito cumulativo dessas medidas tem representado uma fonte de preocupação e insegurança e um efetivo custo adicional de transação para estrangeiros investindo no Brasil. Há de se ter cuidado para que o remédio não mate o paciente.
Thiago Spercel é sócio da área de direito societário e M&A do Machado Meyer Advogados
(Valor Econômico - 12.06.2017, p. E2)
(Notícia na íntegra)