A Lei 11.101/05 (Lei de Recuperações Judiciais e Extrajudiciais e Falência), que regula os processos de recuperação judicial, previu, em seu artigo 49, §3º, que o “credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis” não terá seu crédito submetido “aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais”.

Desde que a LRF entrou em vigor, esse dispositivo tem sido objeto de discussões nos tribunais em relação à extensão da proteção concedida pela norma aos credores com garantias fiduciárias.

Um dos pontos de divergência diz respeito à posição ocupada por aquele que tem crédito com garantia fiduciária nos casos de recuperação judicial de devedor/coobrigado que não é o titular do bem dado em garantia fiduciária. O questionamento é: permanece a não sujeição do crédito (extraconcursalidade) à recuperação judicial ainda que o bem dado em alienação e/ou cessão fiduciária seja de titularidade de terceiro que não consta no pedido de recuperação judicial?

Imaginemos a situação em que “A” é credor de “X” e “Y”, devedores solidários. “Y” alienou fiduciariamente um imóvel de sua titularidade em garantia à dívida com “A”. A controvérsia mencionada surge no caso de eventual pedido de recuperação judicial de “X” apenas. Nesse caso, “A” deverá ser considerado um credor extraconcursal em razão da existência de alienação fiduciária? Ou seu crédito deverá considerado quirografário, já que a garantia fiduciária foi prestada por “Y”, que não é um dos requerentes da recuperação judicial de “X”?

Em 2016, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tratou dessa questão e deu provimento a recurso especial interposto por credor contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que havia estabelecido como concursal o crédito garantido por alienação fiduciária cujo fiduciante não constava no polo ativo do pedido de recuperação judicial.[1] O STJ destacou que a LRF teria estabelecido que não apenas os bens alienados fiduciariamente, mas também os próprios contratos com tais garantias não seriam afetados pela recuperação judicial.

Assim, estabeleceu-se que o crédito do credor não estaria sujeito à recuperação judicial do devedor que não prestou a garantia fiduciária. Em outras palavras, o STJ reconheceu que o privilégio atribuído pela LRF aos créditos dessa natureza decorreria da existência de garantia fiduciária, independentemente da identificação do fiduciante com a recuperanda.

Apesar do entendimento do STJ, o Grupo de Câmaras de Direito Empresarial do TJSP (GCDE) aprovou o Enunciado VI, em 18.02.2019, que estabelece como “Inaplicável o disposto no art. 49, § 3º, da Lei 11.101/05, ao crédito com garantia prestada por terceiro, que se submete ao regime recuperacional, sem prejuízo do exercício, pelo credor, de seu direito contra o terceiro garantidor.” Ou seja, na situação hipotética envolvendo a recuperação judicial de “X”, o GCDE entende que o crédito de “A” deveria ser listado como sujeito à recuperação judicial, o que não prejudicaria o exercício dos seus direitos contra “Y”, devedor fiduciante. Em caso de satisfação da totalidade ou parte da dívida com a excussão da garantia, as consequências se refletiriam no crédito sujeito à recuperação judicial.

A justificativa divulgada para a aprovação do enunciado aponta que não seria admitida a classificação como extraconcursal do crédito contra o devedor em recuperação judicial “em razão da inexistência de vinculação de bem específico de titularidade da recuperanda à satisfação da obrigação”, o que implicaria na submissão do crédito à recuperação judicial com os demais créditos. Situação diversa seria se houvesse “garantia prestada pela própria recuperanda, [em que] haverá especial comprometimento de seu patrimônio, de modo a justificar a extraconcursalidade”, aponta o GCDE.

Devido a alterações na reforma da LRF promovida pela Lei 14.112/20, o GCDE do TJSP se reuniu em 27 de abril de 2021 para revisar diversos dos seus enunciados. Especificamente quanto ao Enunciado VI, deliberou-se pela sua manutenção em sua redação original, sob a justificativa de que a questão ainda seria controversa, pois ainda precisaria “sofrer uma melhor definição pelo STJ.”

Em setembro de 2021, a Terceira Turma do STJ proferiu nova decisão sobre a matéria, em linha com o seu entendimento anterior.[2] Diante dessa nova decisão, a 2ª Câmara de Direito Empresarial do TJSP, que integra o GCDE, chegou a afastar o entendimento contido no Enunciado VI para adotar a posição do STJ.[3]

No entanto, no apagar das luzes do ano passado, em uma das últimas sessões de julgamento, a Terceira Turma do STJ julgou o Recurso Especial 1.953.180/SP, de relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Apesar de a decisão não reconhecer uma expressa mudança no entendimento do STJ, nos parece que o seu julgamento pode indicar uma virada na posição sobre o tratamento da garantia de terceiro na recuperação judicial.

No caso, discutia-se a possibilidade de prosseguimento da execução com expropriação de bens de empresas em recuperação judicial que figuraram como avalistas de dívida também garantida por alienação fiduciária de bem pertencente ao devedor principal. Com base nos entendimentos anteriores do STJ, o credor defendeu a possibilidade de penhora de bens das avalistas, visto que a extraconcursalidade não se limitaria aos bens alienados fiduciariamente.

A Terceira Turma negou provimento ao recurso especial do credor e estabeleceu que “é o objeto da garantia que traça os limites da extraconcursalidade do crédito” e “o crédito será concursal ou extraconcursal a depender da situação em que estiver sendo exigido”. O voto concluiu ainda que os bens das avalistas-recuperandas não poderiam ser utilizados para satisfação da execução proposta pelo credor, pois elas não seriam as proprietárias do bem dado em alienação fiduciária, e o patrimônio de ambas estaria destinado ao pagamento dos credores sujeitos à recuperação judicial.

Diante de tais conclusões, nos parece que o STJ deu uma guinada no seu entendimento a partir do julgamento do Recurso Especial 1.953.180/SP, aproximando-se do estabelecido na Enunciado VI do GCDE do TJSP. Essa afirmação se sustenta nos seguintes pontos:

  • a sujeição ou não do crédito à recuperação judicial dependeria da situação em que o crédito for exigido. Essa premissa também se verifica no Enunciado VI, que reconhece que a não sujeição do crédito dependeria da identidade entre a recuperanda e o fiduciante; e
  • o devedor/coobrigado em recuperação judicial que não prestou a garantia fiduciária não poderia ter seus bens atingidos em execução movida pelo credor fiduciário. Esse ponto também estaria em linha com o entendimento do GCDE, visto que ele tampouco admite o prosseguimento de execução individual contra a recuperanda que não prestou garantia fiduciária, por entender que essa situação envolveria uma dívida concursal.

Por se tratar de uma única e recente decisão nessa linha[4], entendemos ser oportuno acompanhar futuras decisões do STJ sobre o tema. Novos julgamentos sobre a situação das garantias de terceiro na recuperação judicial e seus efeitos permitirão verificar se, de fato, há um alinhamento do entendimento da corte superior ao disposto no Enunciado VI do GCDE ou se a decisão proferida no Recurso Especial 1.953.180/SP pode ser considerada um precedente isolado sobre a controvérsia.

 


[1] STJ, REsp 1549529/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 18.10.2016.

[2] STJ, Recurso Especial 1.938.706 – SP, Terceira Turma, rel. min. Nancy Andrighi, j. 14.09.2021

[3] TJSP, Agravo de Instrumento 2031156-40.2021.8.26.0000, des. rel. Maurício Pessoa, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 28/10/2021.

[4] Embargos de divergência foram opostos no Recurso Especial 1.953.180/SP, mas não foram conhecidos por suposta ausência de similitude fática do acórdão paradigma suscitado pelo embargante, conforme decisão monocrática do início de março de 2022.