Regido pela Lei 9.514/97, o contrato de alienação fiduciária consiste em negócio por meio do qual o devedor transfere a propriedade de um bem ao credor, como garantia de uma obrigação, até a quitação da dívida. Somente após o pagamento integral, a propriedade é transferida de volta ao devedor. Consequentemente, caso o pagamento não se realize, a propriedade é incorporada definitivamente ao patrimônio do credor.
A hipoteca, por sua vez, embora também seja uma forma de garantia real, não implica a transferência da propriedade do bem para o credor. Em caso de inadimplemento, o credor somente terá direito de executar o imóvel hipotecado para reaver o seu crédito.
Desse modo, para o credor fiduciário, a propriedade fiduciária representa direito real sobre bem próprio, sujeita a condição resolutiva, enquanto a hipoteca constitui direito real sobre bem alheio.
Como consequência, quando o devedor hipotecário firma um contrato de promessa de compra e venda de imóvel com terceiro de boa-fé, ele está negociando bem do qual é proprietário. Já quando o devedor fiduciante negocia bem garantido fiduciariamente, ele está vendendo imóvel que pertence ao credor fiduciário.
Foi exatamente esse o fundamento do acórdão proferido pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial 2.130.141/RS. Em sua decisão, a Quarta Turma entendeu não ser possível aplicar, por analogia, a Súmula 308 do STJ, aos casos que envolvem garantia por alienação fiduciária.
A súmula em questão dispõe que “a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”.
No caso concreto, uma empresa alienou fiduciariamente à administradora de consórcios alguns bens imóveis e posteriormente celebrou instrumento de compra e venda com uma terceira empresa. Essa empresa, por sua vez, cedeu e transferiu a pessoas físicas os direitos contratuais em relação aos imóveis mencionados.
Diante do inadimplemento da devedora fiduciante, a credora consolidou em seu nome a propriedade dos imóveis. Os cessionários, então, ajuizaram uma ação declaratória de ineficácia de garantia com desconstituição de gravame.
Ao ser julgada procedente a ação, a administradora de consórcios interpôs recurso de apelação, ao qual foi negado provimento, sob o fundamento de que a jurisprudência do STJ já teria apreciado a aplicação analógica da Súmula 308 às hipóteses de aquisição de imóvel gravado com alienação fiduciária.
Ao analisar o recurso especial interposto pela administradora de consórcios, o STJ relembrou:
- O contexto em que o enunciado da Súmula 308 foi promulgado. Na ocasião, havia desafios em decorrência do caso Encol – que chegou a ser a maior construtora da América Latina, mas foi à falência em 1999. Dezenas de empreendimentos imobiliários tinham sido vendidos e os consumidores buscavam, pela via judicial, liberar as unidades após efetuar o pagamento integral. Diante dessa situação, o enunciado da Súmula 308 estabeleceu que a hipoteca firmada entre a incorporadora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia em relação aos adquirentes do imóvel.
- A ratio decidendi do enunciado da Súmula 308 (isto é, o contexto fático analisado pelo tribunal). No total, em 11 dos 16 julgados que embasaram esse enunciado ficou claro que o crédito foi concedido no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação (SFH). Ao contrário de uma decisão da Terceira Turma do STJ, a maioria dos precedentes não indica que o respeito à boa-fé do adquirente é fato jurídico essencial no âmbito dos direitos reais. O que realmente contou, no caso, foi a existência de um regime especial instituído pelas normas do Sistema Financeiro da Habitação.
- Uma alternativa eficiente. Diante da insegurança jurídica relacionada à hipoteca sobre imóveis em construção, a alienação fiduciária em garantia emergiu como alternativa mais eficiente e segura para os financiadores, contribuindo para a retomada da dinamização do mercado imobiliário e do crédito no Brasil.
- O tratamento normativo distinto conferido aos devedores da hipoteca e da alienação fiduciária. Enquanto o devedor hipotecário detém a propriedade, o devedor fiduciante tem apenas a posse direta do imóvel. O negócio jurídico celebrado com o terceiro de boa-fé, portanto, é ineficaz diante do proprietário do bem, o credor fiduciário. Esse é o entendimento pacífico do STJ, segundo o qual, na venda a non domino – o negócio jurídico realizado por quem não é dono – não produz efeito algum em relação ao proprietário. Há nulidade absoluta, impossível de ser convalidada pelo transcurso do tempo. A boa-fé do adquirente, no caso, é irrelevante.
Estabelecidas essas premissas, o STJ deu provimento ao recurso especial interposto pela administradora de consórcios, reconhecendo que:
- O enunciado da Súmula 308 criou uma exceção à regra geral do direito imobiliário sobre a prioridade registral, ao afirmar que a hipoteca celebrada entre a incorporadora e a instituição financeira não teria eficácia diante dos adquirentes que conseguiram crédito por intermédio do SFH.
- A Lei de Alienação Fiduciária é clara ao exigir a anuência expressa do credor fiduciário para que o devedor fiduciante possa transmitir os direitos sobre o imóvel objeto da alienação fiduciária em garantia.
- Se, por contrato particular de promessa de compra e venda de imóvel ou de cessão de direitos, o devedor fiduciante negociou bem imóvel de titularidade do credor fiduciário sem a sua expressa anuência, esse acordo apenas produzirá efeitos entre os contratantes.
Consequentemente, o STJ decidiu que o enunciado da Súmula 308 não se aplica aos casos de alienação fiduciária:
- pela inadequação de se estender a ratio decidendi da súmula aos casos não contemplados no SFH;
- por ausência de similaridade normativa entre os institutos da hipoteca e da alienação fiduciária;
- porque o negócio jurídico realizado por quem não é dono não produz efeito em relação ao proprietário fiduciário; e
- pela impossibilidade de estender os limites de uma hipótese de exceção normativa para restringir a aplicação de regra jurídica válida.
A recente decisão do STJ representa um incentivo e garante segurança jurídica e econômica nos contratos de alienação fiduciária, o que é crucial para assegurar a estabilidade das relações contratuais e promover o desenvolvimento econômico, ao facilitar o acesso responsável ao crédito.
A confiança nos contratos estimula os investidores a financiar a aquisição de bens e o desenvolvimento de projetos, impulsionando a atividade econômica, além de gerar empregos e renda. Para isso, é fundamental que as normas legais sejam claras e aplicáveis de forma consistente, garantindo a proteção dos direitos das partes envolvidas.
O entendimento de que seria possível aplicar o enunciado da Súmula 308 do STJ aos contratos de alienação fiduciária poderia gerar efeitos prejudiciais inclusive aos próprios consumidores, já que aumentaria o risco percebido pelos agentes financeiros na concessão de financiamentos para imóveis, o que poderia refletir no preço desses contratos.
Do ponto de vista processual, a decisão deixa clara a importância de delimitar a controvérsia e os fatos que deram origem às súmulas e temas vinculantes nos Tribunais Superiores. Isso permite que as partes possam diferenciar os casos e garantir que os precedentes sejam aplicados a situações efetivamente idênticas em termos fáticos e jurídicos.