A discussão relacionada à dedutibilidade das perdas não técnicas de energia elétrica — aquelas decorrentes de furtos, fraudes e erros de medição — ocupa posição central no contencioso tributário das concessionárias do setor elétrico, com impactos diretos na apuração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Para entender melhor o assunto, é importante distinguir as duas categorias de perdas no setor elétrico.
As perdas técnicas são inerentes ao processo físico de transporte e distribuição de energia e resultantes da dissipação de calor nos condutores e transformadores (efeito Joule). Em grande medida, essas perdas são previsíveis e calculáveis.
Já as perdas não técnicas decorrem de fatores externos ao sistema físico e englobam principalmente o furto de energia (conhecido como "gato"), fraudes nos medidores, erros de faturamento e unidades consumidoras não cadastradas. Essas perdas representam um desafio operacional e financeiro para as concessionárias, pois constituem uma energia que é gerada e injetada na rede, mas não é faturada. Isso gera um desequilíbrio econômico que a regulação setorial, a cargo da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), busca mitigar por meio de mecanismos tarifários.
Neste artigo, de forma breve, mas sistemática, analisamos o tratamento tributário das perdas não técnicas no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e as tendências que vêm se consolidando no enfrentamento dessa controvérsia.
Embora se trate de um assunto específico do setor, sua importância é inquestionável, já que há uma linha tênue entre custos inerentes ao serviço regulado e despesas operacionais sujeitas a certas regras para poderem ser deduzidas. O tema exige a integração entre o regime jurídico-tributário, as normas contábeis e a regulação tarifária da Aneel, o que o torna um campo de análise interdisciplinar e de grande complexidade técnica.
Do ponto de vista contábil, a energia elétrica adquirida pela distribuidora é registrada como ativo (estoque). No momento do fornecimento, ocorre a baixa desse ativo e o reconhecimento do custo correspondente. As perdas não técnicas representam parcela da energia necessária para que a distribuidora atenda à totalidade do consumo faturado — o que justifica sua classificação como custo.
Do ponto de vista regulatório, os Procedimentos de Regulação Tarifária (Proret) estabelece metas de perdas não técnicas e reconhece sua inevitabilidade até determinados limites, incorporando essas perdas à tarifa para preservar o equilíbrio da concessão. O fato de o próprio regulador reconhecer a inevitabilidade dessas perdas reforça sua natureza de custo, tornando inadequada a tentativa de reclassificá-las como despesas sujeitas a restrições adicionais.
A Receita Federal, porém, sustenta que as perdas não técnicas não são inerentes, mas sim gerenciáveis, resultantes do grau de eficiência empresarial. Nessa perspectiva, não configurariam custo do serviço, mas sim despesa de furto sujeita ao cumprimento estrito do art. 47, § 3º, da Esse dispositivo é crucial, pois autoriza a dedução desde que a empresa promova a instauração de inquérito ou queixa-crime contra o causador do dano. Em relação à CSLL, a Lei 7.689/88 estabelece uma base de cálculo simétrica à do IRPJ, aplicando a mesma lógica de dedutibilidade.
A interface entre o regime tributário e o regulatório é, portanto, o ponto a ser analisado para compreender a natureza jurídica das perdas não técnicas: seriam elas um custo necessário à prestação do serviço público ou uma despesa operacional sujeita a condições restritivas de dedutibilidade?
Sob a ótica da Receita Federal, a dedutibilidade dessas perdas de energia elétrica dependeria da caracterização como despesa necessária, conforme o art. 47, § 3º, da Lei 4.506/64 e o art. 311 do Regulamento do Imposto de Renda (Decreto 9.580/18), que considera dedutíveis os gastos necessários à atividade da empresa e à manutenção da fonte produtora.
De forma mais específica, a legislação tributária prevê a dedução de perdas decorrentes de atos ilícitos – como furtos e apropriações indébitas – no artigo 376 do mesmo regulamento, que consolida o disposto no art. 47, § 3º, da Lei 4.506/64.
Nos últimos anos, a jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) tem se debruçado sobre essa temática. O Acórdão 1202-001.527 (Energisa Paraíba, de 28 de janeiro de 2025) representa um marco para aqueles que entendem que a energia “perdida” foi efetivamente adquirida e baixada do ativo, devendo, por isso, integrar o custo da energia distribuída, independentemente do limite regulatório e da necessidade de avaliar se a despesa é usual.
Na mesma linha, o Acórdão 1101-001.349 (Eletropaulo, de 16 de julho de 2024), que faz referência ao Comitê de Pronunciamento Contábil 16 (Estoques), reconhece as perdas normais inerentes como custo – não é preciso, portanto, aplicar os critérios de necessidade, usualidade e normalidade típicos das despesas operacionais.
Já os Acórdãos 1004-000.155 e 1004-000.156 (Light, abril de 2024) também seguiram, na linha principal, o entendimento de que as perdas normais seriam custos inerentes à atividade e, por isso, aptos a reduzir a base tributável, Como linha secundária afirmaram que seriam despesas dedutíveis, enquadradas na hipótese do § 3º do art. 47 da Lei 4.506/64.
Apesar disso, decisões discordantes continuam a ocorrer. O Acórdão 1402-007.240 (Light, de 18 de fevereiro de 2025) negou a dedutibilidade afirmando que as perdas não técnicas não se enquadrariam como custos nem como despesas operacionais, proibindo, sob as duas óticas, a dedutibilidade dos valores. Também não foi aplicado o disposto no § 3º do art. 47 da Lei 4.506/64, que permite a dedutibilidade de despesas causadas por furto, quando apresentada queixa na autoridade policial. Isso porque entendeu-se que, naquele caso, a notícia-crime apresentada era genérica e intempestiva.
O entendimento desfavorável parece se apoiar na Solução de Consulta Interna Cosit 3/17 e no Parecer Normativo CST 50/73. Para o fisco, a simples comunicação de furto não basta — é necessário demonstrar a correspondência entre o valor deduzido e o fato delituoso.
Essa exigência, porém, tem sido criticada por seu formalismo excessivo e por se distanciar da realidade operacional das distribuidoras. As concessionárias não dispõem de poder de polícia para individualizar autores de furtos massificados, e a exigência de elementos que extrapolam o texto legal acaba por criar requisitos não previstos em lei.
No confronto entre as posições, a tese favorável ao contribuinte demonstra maior coerência contábil e regulatória. A energia adquirida é efetivamente baixada do ativo no processo de distribuição, e as perdas não técnicas, inevitáveis dentro do sistema, configuram custo da atividade. Além disso, impedir a dedução de valores que já compõem a base de cálculo tarifária configuraria bis in idem econômico-contábil – ou seja dupla tributação de um mesmo fato gerador –, como ressaltado no Acórdão 1101-001.350 (Eletropaulo, de 16 de julho de 2024).
A tendência dominante no Carf é reconhecer as perdas não técnicas como custo inerente à atividade de distribuição, em alinhamento à regulação da Aneel e à lógica contábil da baixa do ativo. Quando tratadas como despesa, deve-se cumprir a exigência de notícia-crime, mas sem extrapolar os limites da lei.
No âmbito judicial, a controvérsia ainda não atingiu o mesmo grau de maturidade observado no Carf. O cenário é mais fragmentado e está em fase de construção. As decisões judiciais, em sua maioria, ainda se concentram na legalidade do repasse desses custos aos consumidores na tarifa de energia, validando a metodologia da Aneel, como se observa nos acórdãos do Processo 0001803-87.2016.8.07.0001 e da Apelação Cível 0830710-75.2020.8.14.0301.
Essas duas decisões, embora não tratem diretamente da dedutibilidade fiscal para IRPJ e CSLL, reforçam um argumento central para as concessionárias: se as perdas são reconhecidas pelo órgão regulador como um componente legítimo e inevitável do serviço, a ponto de serem socializadas entre os consumidores, sua natureza de custo operacional inerente à atividade se fortalece, o que, por consequência, deveria respaldar sua dedução na apuração dos tributos sobre o lucro.
Em síntese, o diálogo entre contabilidade, regulação e direito tributário revela que a dedutibilidade das perdas não técnicas — especialmente quando tratadas como custo — encontra amparo técnico e jurídico robusto. Cabe ao contribuinte apenas reforçar sua narrativa probatória para afastar exigências formais indevidas e consolidar o entendimento favorável já prevalente no Carf.
Nossos especialistas da equipe tributária estão à disposição para esclarecer dúvidas sobre o tema.
