Fernando Castelo Branco e Fernando Colucci
Voltaire já dizia que as leis devem ser claras, uniformes e precisas, porque interpretá-las, quase sempre, é o mesmo que corrompê-las. A Lei nº 13.254/16, que instituiu a regularização de ativos no exterior (RERCT), não é perfeita. Em geral nenhuma lei é, mas essa, em particular, trouxe em sua gênese alguns problemas interpretativos. E, infelizmente, tais problemas só foram agravados com a edição, pela Receita Federal da Instrução Normativa nº 1.627/16 e de diferentes versões de suas "Perguntas e Respostas". A regulamentação da Receita, que deveria apaziguar os ânimos e aclarar imprecisões, ampliou, sem atribuição para isso, o alcance da lei, contribuindo para instituir cenário ainda mais nebuloso.
Por outro lado, já ultrapassamos a metade do prazo concedido àqueles que pretendem declarar os bens e direitos que tenham sido remetidos ilegalmente ao exterior ou lá mantidos até 31 de dezembro de 2014, à margem das autoridades brasileiras, ou repatriados por meio de operações ilícitas.
Infelizmente, a essa altura, não há mais tempo a perder. Não há indicações de que a oportunidade concedida se repetirá num futuro próximo; as trocas de informações entre o Fisco global - inclusive de antigos paraísos fiscais - é uma realidade; e a Receita vem sinalizando que já dispõe de dados que permitirão identificar e multar quem cometeu irregularidades, remetendo as informações ao Ministério Público Federal, para providências criminais.
Apesar do movimento noticiado pela imprensa nos últimos dias, desmentido em entrevistas mais recentes do ministro da Fazenda, no sentido de que haveria uma mobilização do governo e da Câmara dos Deputados para aprimorar alguns pontos da lei, não é aconselhável se fiar nessa expectativa em razão de seu caráter meramente especulativo. Até porque, as divergências interpretativas não afetam todas as pessoas que pretendem aderir ao programa.
A principal dúvida, amplamente debatida desde a edição da lei, diz respeito aos valores que foram consumidos ao longo dos anos, apesar de ainda existir, em 31 de dezembro de 2014, algum saldo nas contas. O entendimento inicial era no sentido de que a declaração daquele saldo, e o pagamento do imposto e multa, com base nesse valor, seria suficiente para atingir os objetivos da medida, principalmente no tocante à anistia tributária e à extinção da punibilidade criminal. Valeria a "fotografia" daquele momento.
A Receita, porém, vem adotando posicionamento diverso, exposto nas versões mais recentes do conjunto de "Perguntas e Respostas" que disponibilizou para consulta. Apesar de tal interpretação não constar da Instrução Normativa nem das versões de "Perguntas e Respostas" publicadas durante os primeiros meses do prazo para adesão ao RERCT, a Receita passou a considerar que devem ser declarados o saldo e também os valores consumidos, tributando-se tudo. Para a Receita, deve ser declarado todo o "filme". As pessoas nessa situação, que optarem por seguir essa orientação, pagarão uma conta bem mais salgada, em muitas situações superior a todo o saldo existente em 31 de dezembro de 2014.
Com relação a isso, cabe uma observação importante. Esse é o entendimento atual da Receita. Mas não é o entendimento definitivo acerca da questão: há sólidos argumentos jurídicos contra ele e a palavra final caberá ao Judiciário. O importante é que se tenha em conta que eventual divergência na interpretação da lei jamais poderá implicar exclusão do contribuinte do RERCT. Quando muito, o Fisco poderá lavrar auto de infração para exigir as diferenças que entende devidas, mas, restará ao contribuinte o direito de defesa nas esferas administrativa e judicial. E, mesmo nesse caso, estaria garantida a extinção da punibilidade penal.
Apesar da controvérsia, é praticamente unânime a opinião de que, na maioria dos casos, há segurança jurídica para aderir ao programa. Os interessados em fazê-lo, por sua vez, não devem deixar o assunto para a última hora pois a adesão não é um processo simples. Depende de análise pormenorizada de cada caso particular - com suas peculiaridades tributárias e criminais -, baseada, inclusive, em documentos que muitas vezes estão no exterior e não podem ser obtidos rapidamente.
Como dissemos no início, a lei não é perfeita e a interpretação que a Receita vem dando a ela pode inibir a adesão de alguns. Porém, essa é a situação posta, e o conselho é fazer desse limão uma limonada, ainda que implique em um embate com as autoridades fiscais em caso de questionamento futuro.
Fernando Castelo Branco é advogado criminalista, professor de processo penal do Instituto de Direito Público de São Paulo e da PUC/SP, e sócio do Castelo Branco Advogados Associados E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
Fernando Colucci é advogado tributarista, professor de pós-graduação da FGV e sócio do Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados
(Valor Econômico - 20.09.2016)
(Notícia na íntegra)