Por Thiago A. Spercel e Victor Goulart Lazarini

Recentemente, em 30 de abril de 2019, o governo federal editou a Medida Provisória nº 881 (a “MP da Liberdade Econômica”), com vistas a estabelecer garantias de livre mercado e instituir medidas de cunho liberal na área econômica. Dentre outras normas, a MP da Liberdade Econômica introduziu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, a qual deve funcionar como um conjunto de direitos voltados a diminuir o aparelho burocrático do Estado e aproximar o ambiente de negócios brasileiro ao de países desenvolvidos.

Nesse sentido, a MP da Liberdade Econômica estabelece diretrizes visando o estímulo à inovação, impõe mudanças no campo das liberdades econômicas, altera normativos da ordem trabalhista – tal como a permissão para que o comércio funcione a qualquer dia ou horário da semana – bem como altera dispositivos do Código Civil (Lei nº 10.406/2002). Dentre as mudanças, destacamos as alterações ao artigo 50 do Código Civil, que trata da desconsideração da personalidade jurídica.

Atualmente, os três tipos societários mais comuns e utilizados no Brasil são as sociedades limitadas, as sociedades anônimas e as empresas individuais de responsabilidade limitada (EIRELI), sendo que o principal ponto em comum encontrado nesses tipos societários gira em torno da limitação da responsabilidade dos sócios. Via de regra, é a própria pessoa jurídica que se responsabiliza civil e administrativamente por eventuais danos por ela causados (responsabilidade primária).

No entanto, os sócios e administradores poderão ser responsabilizados (responsabilidade secundária) em situações excepcionais, em que abusam da personalidade jurídica da sociedade para se valerem culposa ou dolosamente da sua autonomia patrimonial a fim de não honrarem com as obrigações da sociedade empresária, transformando-a em um mero instrumento de blindagem do seu próprio patrimônio.

Em casos como esses, a personalidade jurídica da entidade poderá ser desconsiderada, de modo que seus sócios e/ou administradores sejam responsabilizados pela reparação dos danos causados pela sociedade. Trata-se, portanto, do que a doutrina e a lei chamam de desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine), que consiste no afastamento temporário da personalidade jurídica da sociedade a fim de possibilitar que seus credores sejam ressarcidos e os sócios e administradores responsabilizados pela prática do ato abusivo.

Antes da MP da Liberdade Econômica, a desconsideração da personalidade jurídica, conforme disposta no artigo 50 do Código Civil, seria devida “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial”. Sem especificar o que caracteriza um desvio de finalidade ou confusão patrimonial, coube à doutrina e à jurisprudência definir tais conceitos ao longo dos anos. Além disso, ao prever que a desconsideração seria devida para que “os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações da sociedade fossem estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”, o legislador acabou deixando margem suficiente para que sócios e administradores que nada tinham a ver com o ato abusivo também fossem responsabilizados, como sócios minoritários sem poder de gestão, por exemplo.

Art. 50 – Código Civil

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

§ 1º Para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:

I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;

II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante; e

III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

§ 3º O disposto no caput e nos § 1º e § 2º também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.

§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.

§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.

É louvável, portanto, a inovação trazida pela MP da Liberdade Econômica, por meio da alteração ao artigo 50 do Código Civil que, além de especificar que a desconsideração deve ocorrer para alcançar os bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica “beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”, trouxe as definições de “desvio de finalidade” e “confusão patrimonial”, a fim de garantir tratamento equânime sobre o tema perante os diversos tribunais do país, bem como para garantir maior segurança jurídica ao ambiente de negócios brasileiro.

Quanto à definição de desvio de finalidade trazida no §1º, caracterizada pela “utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza” (grifos nossos), ela basicamente deu força legal ao entendimento jurisprudencial consolidado nesse sentido, que já havia caracterizado o desvio de finalidade como o “ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica”i, de modo a confirmar o modelo subjetivo e agravado adotado pelos tribunais brasileiros, que exige comprovação de dolo no caso concreto.

Sobre a definição de confusão patrimonial trazida no §2º, conceituando-a como “a ausência de separação de fato entre os patrimônios”, a MP da Liberdade Econômica passou a listar exemplos para orientar o intérprete da lei, mas ao mesmo tempo o inciso III deixou ampla margem para enquadramento em situações não descritas na lei, desde que configurem atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

No entanto, nos parece que a referida medida provisória deixou de enfrentar uma outra questão que fere frontalmente os princípios da autonomia da pessoa jurídica e da separação patrimonial: a responsabilização automática de grupos econômicos e pessoas relacionadas, independentemente da constatação de confusão patrimonial ou do desvio de finalidade.

Via de regra, a desconsideração da personalidade jurídica depende da confusão patrimonial ou do desvio de finalidade em sociedade em estado de insolvência (teoria maior). Contudo, em algumas situações, e a depender da natureza jurídico-material, desconsidera-se a personalidade jurídica com base na mera insolvência da sociedade (teoria menor).

Na prática, as cortes brasileiras se socorrem de textos normativos carentes de precisão técnica e inseridos no nosso ordenamento antes mesmo da redação original do artigo 50 do Código Civil, para desconsiderar a personalidade jurídica com base na mera insuficiência patrimonial da sociedade empresária.

Sob o pretexto da aplicação da teoria da disregard doctrine, imputa-se responsabilidade aos sócios e administradores pela mera insuficiência patrimonial da sociedade, sem qualquer análise das razões pela qual a sociedade encontra-se em tal situação em primeiro lugar. Tornou-se frequente no judiciário brasileiro aplicar-se a disregard doctrine para ampliar o espectro de responsabilização para empresas controladas, coligadas e também as integrantes do mesmo grupo econômico da sociedade credora. É possível observar esse fenômeno jurisprudencial especialmente em matérias de natureza consumerista, ambiental, trabalhista e anticorrupção.

Por exemplo, com base no artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), no artigo 4º da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998), no artigo 2º da CLT (Decreto-Lei nº 5.452/1943) ou no artigo 14 da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), sob o pretexto de proteger garantias constitucionalmente previstas, como a proteção ao trabalhador, ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio público, etc., na prática, o que acontece é que os tribunais brasileiros aplicam a desconsideração da personalidade jurídica pela mera insuficiência patrimonial da sociedade, buscando a relação de todos os sócios e administradores da sociedade e, ao mesmo tempo, ampliam essa responsabilização para todas as empresas que integram o grupo, como forma de obter o devido ressarcimento aos danos sofridos pelo credor.

Nesse contexto, ainda que se reconheça que as mudanças ao artigo 50 trazidas pela MP da Liberdade Econômica serão positivas nas relações entre empresários, entendemos que a MP deixou de combater a principal raiz do problema quando se fala em limitação da responsabilidade: a existência de múltiplos parâmetros de aplicação da teoria menor da desconsideração nos diversos microssistemas jurídicos e a inconsistência de interpretação das cortes sobre os limites da desconsideração.

Para o bom desenvolvimento do mercado, seria interessante que a MP da Liberdade Econômica também trouxesse maior clareza e segurança jurídica sobre as hipóteses em que terceiros possam ter sus patrimônios expostos às dívidas e obrigações de sociedades empresárias. Exceto nos casos da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica (Art. 50 do Código Civil) e de solidariedade por previsão expressa em lei ou contrato, seria importante que as cortes evitassem interpretações extensivas da disregard doctrine, que visem unicamente endereçar o problema da insuficiência de patrimônio (que faz parte do risco da concorrência em mercado).

Dessa forma, ainda que a MP da Liberdade Econômica tenha acertado em trazer maior objetividade para a redação do artigo 50 do Código Civil, há o risco que tal alteração não venha a produzir muitos efeitos práticos na aplicação do instituto da desconsideração nos tribunais brasileiros, principalmente porque atualmente as maiores afrontas à responsabilidade limitada decorrem da aplicação da desconsideração em matérias consumeristas, trabalhistas e ambientais, e não civis.

Jota
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(Notícia na Íntegra)