O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) reformou decisão liminar que havia suspendido os efeitos do artigo 162 da Lei Municipal nº 16.402/14 (Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo de São Paulo) e sobrestado a tramitação de quase dois mil processos de licenciamento de obras, atividades e edificações protocolados sob a vigência das legislações anteriores, o que causara prejuízos vultosos e irreparáveis à economia municipal e à segurança jurídica do setor. Com a decisão do Órgão Especial, os mais de 1.900 processos identificados nessa situação (segundo a prefeitura e desconsiderando os que estão sendo examinados por prefeituras regionais e secretarias) poderão retomar seu trâmite normal imediatamente.
Embora preliminar, a decisão representa um alívio para o mercado imobiliário, que vivia uma situação de incerteza e insegurança jurídica desde fevereiro deste ano, após concessão de liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) proposta pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, por seu Procurador Geral de Justiça, para declarar a incompatibilidade do chamado “direito de protocolo” com a Constituição do Estado de São Paulo. Previsto no artigo 162 da Lei Municipal nº 16.402/16, o direito de protocolo garante que seja aplicada aos pedidos de licença construtiva a legislação em vigor na data do protocolo do pedido à Prefeitura Municipal de São Paulo, ainda que normas supervenientes alterem as regras incidentes sobre o terreno. O dispositivo legal contestado visava, justamente, evitar os conflitos frequentes que envolvem a entrada em vigor de uma nova lei e o regramento das relações jurídicas anteriores. Trata-se, portanto, de verdadeira regra de transição, tendo por finalidade precípua a segurança jurídica e a estabilidade das relações entre particulares e o Poder Público.
Da motivação do pedido
Para o Ministério Público, o artigo 162 conflita com o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto na Constituição Federal (artigo 225, §1o, III), e com o princípio da vedação ao retrocesso socioambiental, também destoando, a esse respeito, da Constituição Estadual (artigos 111, 144, 180, III, IV e V, 191, 192 e 196). Sendo assim, a manutenção do direito de protocolo em Zonas Especiais de Proteção Ambiental sobreporia os interesses individuais e particulares à tutela ambiental.
Apesar dessa fundamentação, no despacho concedendo a medida liminar, o desembargador relator Evaristo dos Santos deixou de fazer referência ao alcance de tal medida, se abrangente apenas aos terrenos inseridos em Zepam (Zona Especial de Proteção Ambiental), para os quais alega o MP deveria prevalecer a lei de zoneamento atual, ou se aplicável indiscriminadamente aos mais de 1.900 processos administrativos de licenciamento protocolados na Prefeitura Municipal de São Paulo até a data de publicação da Lei Municipal nº 16.402/16 e sem despacho decisório. Por efeito direto dessa decisão, a Prefeitura de São Paulo havia paralisado o trâmite de todos esses processos, por causa, justamente, das incertezas advindas da concessão da liminar.
O pedido parece, ainda, ter o pretexto de coibir uma pretensa conduta abusiva casuística de determinados players do mercado imobiliário com relação ao direito de protocolo. O Ministério Público fez uso indiscriminado de um instrumento jurídico com eficácia contra todos os administrados – a Ação Direta de Inconstitucionalidade – que, na eventualidade de ser julgado procedente, ocasionará prejuízos inclusive para aqueles que exercitaram o direito de protocolo de boa-fé, sob o primado do princípio da confiança legítima, e os que adquiriram o direito de ter seus projetos analisados de acordo com a lei vigente à época do protocolo (que gozava de presunção de constitucionalidade), nunca antes impugnada.
Não bastasse a legislação e a jurisprudência existente sobre o tema, que restringe as hipóteses de aplicabilidade do direito de protocolo justamente para evitar seu uso abusivo, o combate a condutas supostamente abusivas deve ser feito sempre caso a caso, levando em consideração suas peculiaridades, pois, do contrário, serão apenados indistintamente todos os que legitimamente exerceram o direito de protocolo. Não há inconstitucionalidade pretérita de protocolos realizados de maneira lícita e respeitando a legislação então vigente. Admitir o que o Ministério Público aduz na referida ação importa em ignorar o direito adquirido e fazer pouco caso da segurança jurídica, o que não se pode admitir no Estado democrático de direito.
Dos efeitos da decisão
A declaração do voto vencedor foi sucinta e objetiva, afastando do presente caso os requisitos necessários, essenciais e cumulativos, que legitimam a concessão de medida liminar, uma vez que verificou como ausente o periculum in mora, tendo a lei de zoneamento sido editada em março de 2016 e, portanto, há mais de ano e dia.
Embora a decisão tenha sido apreciada em cognição sumária e não exauriente, o Órgão Especial, em certa medida, acabou por antecipar a discussão de mérito, o que pode ser um indicativo de seu entendimento a respeito. Nesse sentido, o voto condutor que acolheu o recurso destacou que, no momento, não se poderia pressupor que os protocolos anteriores à Lei Municipal nº 16.402/16, efetivados conforme a legislação municipal revogada, continham mácula de inconstitucionalidade. Por esse motivo, entendeu-se que a restrição imposta mediante a suspensão do direito de protocolo seria desproporcional, em detrimento da segurança jurídica e da tutela da confiança legítima dos administrados.
Ainda que tal indicativo não se confirme em uma decisão final de mérito e que o TJSP, ao contrário do indicado pelo Órgão Especial, venha a decidir pela declaração da inconstitucionalidade do artigo 162, eventual decisão que acolha os pedidos do Ministério Público no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade terá que modular adequadamente os efeitos da suspensão do direito de protocolo em decorrência da revogação do artigo 162. Será preciso levar em conta o aspecto temporal (efeitos ex tunc, ou seja, anteriores à decisão, ou ex nunc, a partir da decisão) e a abrangência da medida em relação ao mérito - quanto à localização (se abarcará apenas projetos localizados em zonas de proteção ambiental) e quanto aos diferentes estágios dos processos administrativos de licenciamento (apenas processos em seu estágio inicial, sem nenhuma decisão proferida, ou também aqueles que já tenham alvarás de aprovação emitidos ou até mesmo os que já disponham de alvará de execução e estejam em estágio avançado de construção, por exemplo) – tendo em vista razões de segurança jurídica e de excepcional interesse social.
Atualmente, a Prefeitura Municipal de São Paulo tem dado prosseguimento à análise dos processos protocolados até a publicação da Lei Municipal nº 16.402/16, respeitando o direito de protocolo e aplicando a legislação vigente à época do protocolo. Aguarda-se, porém, o prosseguimento do trâmite normal da ação pelo desembargador relator e a provável interposição de recurso por parte do Ministério Público. Ao que tudo indica, até por demonstração expressa do próprio Órgão Especial na decisão que acolheu o recurso e em se tratando de questão essencialmente jurídica, um desfecho para a Ação Direta de Inconstitucionalidade não deve demorar para acontecer, ao menos perante o TJSP. Vale lembrar, porém, que também cabe a interposição de recursos aos tribunais superiores.