Por Rafael Vanzella, Debora Leal e Gabriel Nagle
A Lei 14.286/21 (Nova Lei Cambial), sancionada em 30 de dezembro de 2021, representa um marco para os negócios em moeda estrangeira regidos sob lei brasileira, inclusive para o financiamento de projetos de infraestrutura situados no país. A nova regulação faz parte da Agenda BC, promovida pelo Banco Central do Brasil (BCB) e tem como propósito organizar a legislação cambial brasileira – atualmente composta por um conjunto difuso de normas elaboradas sob conjunturas nacionais e internacionais anacrônicas com relação às práticas econômicas e comerciais mais recentes.
A lei cumpre o importante papel de consolidar e modernizar o ambiente regulatório, aproximando-se, portanto, do tratamento dado à matéria segundo os padrões internacionais vigentes. Ela entrará em vigor em 30 de dezembro de 2022, após decorrido um ano de sua publicação oficial, de modo que ao BCB e ao Conselho Monetário Nacional (CMN) caberá a edição de normas infralegais subsequentes, a fim de disciplinar alguns dos temas abordados.
Entre as inovações implementadas está a facilitação da circulação do real no exterior. Nesse sentido, o art. 6º da lei dispõe que os bancos autorizados a operar no mercado de câmbio poderão “dar cumprimento a ordens de pagamento em reais recebidas do exterior ou enviadas para o exterior”, na forma de regulamento a ser editado pelo BCB. Assim, fica instituída a possibilidade de investimento de recursos captados no Brasil em operações externas, por meio da utilização de contas, em reais, mantidas nos bancos por instituições domiciliadas ou com sede no exterior, estando sujeitas à regulação e à supervisão financeira de seu país de origem. Como efeito possível, tem-se o aumento da circulação do real nos mercados internacionais, ao mesmo tempo que se mitigam as limitações existentes para a aplicação, no exterior, de recursos captados no Brasil.
Na perspectiva dos projetos de infraestrutura, evidenciam-se, também, mudanças relevantes, sistematizadas sob a redação do art. 13, que trata do pagamento em moeda estrangeira de obrigações exequíveis no território nacional. Inicialmente, é importante notar que a Lei 14.286/21 acarreta, entre outros efeitos, a revogação do Decreto-Lei 857/69, o qual, embora oriundo de uma realidade macroeconômica pretérita, ainda se encontra em vigor até superada a vacatio legis da nova regulação. As alterações introduzidas pelo art. 13 da Nova Lei Cambial reiteram alguns dispositivos que já existiam sob o referido decreto-lei, mas, principalmente, consolidam um novo ambiente de negócios, cujos contornos práticos já vinham se estabelecendo a partir da interação dos agentes de mercado com as instituições financeiras.
Dessa forma, o inciso VII do art. 13 introduz a possibilidade expressa de pagamento, em moeda estrangeira, de obrigações exequíveis no território nacional “nos contratos celebrados por exportadores em que a contraparte seja concessionária, permissionária, autorizatária ou arrendatária nos setores de infraestrutura”. Nesses termos, a alteração permite que os negócios jurídicos celebrados entre exportadores e titulares de projetos de infraestrutura sejam indexados diretamente em moeda estrangeira, no âmbito dos contratos firmados em áreas como energia, logística e transportes em geral, saneamento básico e facilities governamentais, entre outros.
As análises correntes da matéria não têm dado conta da amplitude do permissivo legal. Nota-se um entusiasmo maior no setor de energia, diante da possibilidade, agora expressamente permitida em lei, de que os contratos de compra e venda de energia (Power Purchase Agreements – PPAs) sejam indexados em moedas estrangeiras, como o dólar e o euro. No caso das geradoras de energia elétrica, financiadas em moeda estrangeira, inclusive para fins de aquisição de equipamentos importados, seu serviço da dívida está majoritariamente atrelado ao dólar. Assim, a celebração de PPAs dolarizados permitirá um efeito colateral imediato representado pelas receitas lastreadas em indexador equivalente.
No entanto, a redação da lei, como se observou, foi bem mais abrangente, pois diversas áreas de infraestrutura, além de energia, poderão ser igualmente beneficiadas com as novas perspectivas. Os contratos de transporte e outros negócios para movimentação de cargas, por exemplo, também poderão ser celebrados em moeda estrangeira. Considerando-se as práticas usuais de mercado, que introduzem nesses arranjos contratuais cláusulas de take or pay, a possibilidade de um lastro de receitas em moeda estrangeira facilitará a constituição de garantias para os financiamentos tomados pelo mesmo indexador. Em saneamento básico, da mesma forma, espera-se que os projetos associados, voltados a atender às necessidades de grandes consumidores, como geralmente são os próprios exportadores, originem contratos em moeda estrangeira. Isso permitirá que os operadores dos sistemas de água e esgotamento sanitário possam diversificar seu portfólio de dívida, para incluir financiamentos indexados, ou mesmo operações mais complexas de swap, que venham a mitigar riscos cambiais na importação de equipamentos e tecnologias de tratamento de efluentes.
A importância da medida introduzida pela Nova Lei Cambial é, portanto, notável, uma vez que os contratos sob a nova disciplina têm relação direta com os investimentos em infraestrutura e capturam com precisão o elo desse setor com a economia de exportação, seja pela prestação de serviço de transporte, seja pelo provimento de serviços públicos essenciais como fornecimento de água e energia. Na impossibilidade de celebração de contratos com tais características, os titulares de projetos de infraestrutura não apenas têm seu acesso ao mercado internacional de crédito dificultado, como também se expõem à maior quantidade de riscos atrelados à variação cambial, quando insumos indispensáveis precisam ser importados. Sob a Nova Lei Cambial, aqueles titulares terão acesso a novas fontes de financiamento em nível global e também poderão organizar operações casadas de receitas e despesas sob o mesmo indexador cambial, quando presentes usuários qualificados como exportadores.
Esse efeito de mitigação de risco cambial nos projetos de infraestrutura foi expressamente contemplado pelo inciso VIII do mesmo art. 13 da lei, ao permitir, adicionalmente, a obrigação de pagamento em moeda estrangeira “nas situações previstas na regulamentação editada pelo Conselho Monetário Nacional, quando a estipulação em moeda estrangeira puder mitigar o risco cambial ou ampliar a eficiência do negócio”.
Sob esses aspectos, a Nova Lei Cambial torna mais flexível o traçado regulatório referente às operações cambiais, ao “deslegislar” as oportunidades de indexação cambial dos negócios jurídicos regidos por lei brasileira, remodelando as competências ao BCB e ao CMN, o que possibilitará maior agilidade na disposição de normas relevantes para acompanhar as dinâmicas de mercado. Ao mesmo tempo, a nova lei já contém parâmetros objetivos e que, em princípio, prescindirão de regulação consequente das autoridades monetárias no que se refere a algumas oportunidades no setor de infraestrutura, onde se esperam verdadeiras transformações de modelagem contratual, não apenas em áreas mais consolidadas, como energia, mas também em temas ainda incipientes em ferrovias, portos e saneamento básico, para ficar apenas com alguns exemplos.