Por Bárbara Pombo
| Brasília No
apagar das luzes do ano no Judiciário, o Superior Tribunal de Justiça (STJ)
abriu um precedente considerado por ministros um dos mais importantes de 2014.
Em decisão inédita, a Corte liberou uma empresa em recuperação judicial a
participar de licitações e manter os atuais contratos que possui com órgãos
públicos. Controverso,
o assunto coloca na balança do Judiciário a necessidade de fomentar o
reerguimento de empresas brasileiras e os riscos aos cofres públicos com
descumprimentos de contratos por incapacidade financeira de prestadores de
serviço. Por
maioria de votos (3 x 2), os ministros da 2ª Turma sinalizaram na quinta-feira
(18/12) uma flexibilização na exigência de certidão negativa de concordata
prevista na Lei de Licitações (artigo 31, II, da Lei 8666/93) para empresas que
estão em processo de recuperação. Os ministros Mauro Campbell (relator do
caso), Og Fernandes e Assusete Magalhães fundamentaram seus votos no princípio
da Lei de Falência e Recuperação Judicial (artigo 47 da Lei 11.101/05), de
promover a superação da crise econômica da empresa a fim de permitir a
manutenção do emprego e do interesse dos credores. O
precedente da 2ª Turma inaugura a discussão que deve tomar corpo a partir de
2015 no STJ, com a análise do recurso do Ministério Público do Rio Grande do
Sul contra decisão do Tribunal de Justiça do Estado que autorizou uma empresa
de informática - com 100% do faturamento atrelado a contratos com órgãos públicos - a participar de licitações (REsp 1471315/RS). Apenas o pedido de liminar foi
apreciado ontem (Ag na Medida Cautelar 23.499/RS). Para o MP, deve ser
estendida às empresas em recuperação a regra fixada para concordata, abolida no
Brasil em 2005. Dependência"Apesar
de ter sido tomada em medida cautelar, a Corte sinaliza a posição que poderá
adotar no recurso principal", afirma o advogado Mark Kreidel, do escritório
Levy & Salomão, acrescentando que empresas que têm o Estado como maior
cliente não representam a maior fatia dos pedidos de recuperação. "Mas como a
prestação de serviços públicos é um nicho muito exclusivo, a tendência é que
essas empresas tornem-se dependentes de licitações. Logo, uma decisão contrária
representaria a falência delas." A
decisão, segundo advogados, segue a interpretação que vem sendo adotada pela
Justiça de São Paulo. Empresas que realizam obras de implantação de sistemas de
abastecimento de água e saneamento, por exemplo, foram dispensadas de
apresentar certidão negativa de recuperação judicial para disputarem contratos
públicos. "Essa excessiva exigência feita nos editais não pode prevalecer
porque o efeito prático delas é anular a viabilidade da superação da crise
econômica do devedor", afirmou em decisão de agosto o juiz Paulo Furtado de
Oliveira Filho, da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais.
Para
advogados, a questão ainda coloca em debate a atuação do governo frente a
reestruturação de empresas em crise. Pela lei, a recuperanda pode pedir
empréstimos subsidiados ou de bancos públicos. "Mas cada instituição tem uma
política. O Banco do Brasil, por exemplo, não empresta para empresas em
recuperação", afirma o advogado Júlio Mandel, do escritório Mandel Advogados.
O
Conselho Monetário Nacional (CMN), diz Mandel, concede às
recuperandas rating H, o pior do mercado, o que exige dos bancos o
provisionamento integralmente do valor emprestado, encarecendo ou
inviabilizando o crédito. "Natural o rating baixar quando há o pedido
da recuperação. Mas, após a aprovação do plano pelos credores, o passivo é
reestruturado e muitas vezes as empresas ficam em situação melhor que uma
companhia que não está em recuperação", completa.
Flexibilização No
STJ, os ministros Campbell e Assusete ainda levaram em consideração, para
liberar a participação em licitações, a tendência adotada pela Corte de
interpretar as normas relacionadas à recuperação judicial com base no artigo 47
da lei de falências. "Em situações similares o STJ tem relativizado as
exigências documentais, previstas em lei, para que empresas em recuperação
logrem êxito em seu plano de recuperação", afirmou Campbell. Em
junho de 2013, a Corte Especial dispensou, para a aprovação do plano de
recuperação, a apresentação de certidão de regularidade fiscal diante da inexistência
de parcelamento de dívida tributária e previdenciária para companhias em crise
(REsp 1187404/MT). Apesar de a lei de falências prever a concessão de
parcelamentos, o governo só abriu em novembro um programa de quitação de
débitos específico. Em abril, a 4ª Turma obrigou a Petrobras a pagar R$ 585 mil
a uma prestadora de serviços que, em recuperação judicial, estava sem Certidão
Negativa de Débitos (REsp 1173735/RN). Sem salvo-conduto Acompanhando
a decisão do tribunal gaúcho, a 2ª Turma entendeu que o pedido genérico da
empresa de informática para participar de concorrências - sem especificar um
órgão na ação - não
vincularia a administração pública como entenderam os ministros
Humberto Martins e Herman Benjamin. Em outras palavras, a decisão não serviria
como um salvo-conduto. Seguindo
a lógica do que não é proibido é permitido, declarou-se a liberdade da empresa
de se inscrever em licitações, e não a obrigação do órgão público de aceitá-la
no processo. Caso seja negado o ingresso na concorrência pelo simples fato de
estar em recuperação, caberia a impetração de mandado de segurança, afirma o
advogado Marcelo Proença, que defendeu a prestadora de serviços no STJ. Pesou
ainda o fato de a companhia estar em dia com o pagamento de tributos. Como a
Lei de Falências (artigo 52, inciso II) não dispensa as certidões de
regularidade fiscal para a contratação com o Poder Público, a conclusão é que
uma empresa em dia com o Fisco poderia participar de licitações. Nuanças Além
da interpretação do artigo 31, inciso II da Lei de Licitações, outras nuances
da controvérsia deverão ser analisadas a partir do próximo ano, embora alguns
ministros já tenham sinalizado suas posições. Para
a ministra Assusete Magalhães, o cumprimento de dois outros requisitos exigidos
na licitação – apresentação de balanços e garantias – evitaria prejuízos à
administração. "Em princípio, o preenchimento dos requisitos para a comprovação
da qualificação econômica-financeira da licitante poderia, em princípio, manter
incólume o interesse público, questão a ser deslindada no julgamento do recurso
especial", afirmou a ministra, no voto de 23 páginas proferido ontem. Segundo
a advogada da área de contencioso do Machado Meyer Advogados Renata Oliveira,
a administração pública tem condições de analisar o caso concreto da empresa
sem dispensá-la pela falta de uma certidão. "Em caso de dúvidas, a realização
de diligências para comprovar a qualificação econômica, além da habilitação
técnica, já traria segurança ao Poder Público", disse.