Em razão da volatilidade sem precedentes do mercado de capitais brasileiro e das restrições impostas pelo governo à livre movimentação de pessoas durante a pandemia do coronavírus, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) adotou uma série de medidas para incentivar a economia e dar maior flexibilidade aos participantes do mercado para cumprirem  as regras a eles aplicáveis.

Para ajudar as empresas a compreender as diversas medidas adotadas pela CVM nesse contexto, apresentamos a seguir uma breve análise das principais regras de flexibilização aplicáveis à indústria de fundos de investimento desde o início da crise do coronavírus:

Oferta pública de cotas de fundos de investimento

  • As cotas de fundos de investimento podem ser distribuídas aos investidores publicamente no mercado de capitais de acordo com: (i) o procedimento padrão previsto na Instrução CVM (ICVM) nº 400/03, conforme alterada, que exige registro prévio da oferta na CVM; ou (ii) o procedimento com esforços restritos de distribuição previsto na Instrução ICVM 476/09, conforme alterada. No último caso, a oferta pública é automaticamente dispensada de registro na CVM, desde que direcionada a até 75 investidores profissionais, conforme definidos no artigo 9-A da ICVM 539/13, observado que apenas 50 deles podem subscrever e adquirir as cotas emitidas pelo fundo de investimento em questão.
  • Instrução CVM 400/03: a CVM emitiu as seguintes regras de flexibilização aplicáveis às ofertas públicas de fundos de investimento realizadas de acordo com o procedimento previsto na Instrução CVM nº 400/03:
  • Alterações nas ofertas públicas já submetidas a registro na CVM: como regra geral, modificações substanciais, posteriores e imprevisíveis nas circunstâncias existentes quando da apresentação do pedido de registro à CVM de ofertas públicas que não tenham sido liquidadas financeiramente requerem a submissão de um pleito de modificação da oferta para a autarquia, de acordo com o artigo 25 da ICVM 400/03. Como exceção a tal regra, a CVM emitiu o Ofício-Circular nº 2/2020-CVM/SRE, em 28 de fevereiro de 2020, por meio do qual passará a aprovar automaticamente solicitações que atendam aos seguintes requisitos, estendendo a distribuição da oferta em questão por mais 90 dias: (i) as solicitações sejam protocoladas na CVM em um período de até 30 dias contado de 13 de março de 2020; e (ii) as solicitações sejam justificadas pela comprovada deterioração e volatilidade do cenário de investimentos. As modificações das ofertas públicas com essa justificativa podem ser implementadas imediatamente, por meio do envio da documentação alterada à CVM e a divulgação de um comunicado aos investidores. Os investidores que tenham aderido à oferta pública modificada de acordo com esse procedimento deverão ter a oportunidade de desistir do investimento dentro de cinco dias a partir do recebimento do comunicado nesse sentido.
  • Interrupção do período de análise pela CVM: de acordo com o artigo 10 da ICVM 400/03, o emissor e a instituição intermediária líder de uma oferta pública de valores mobiliários podem solicitar a interrupção da análise da oferta em questão por um período de até 60 dias úteis. Com a publicação da Deliberação CVM nº 846, em 16 de março de 2020, no entanto, o período de interrupção de uma oferta pública pode ser estendido para até 180 dias úteis. A CVM avaliará em abril a eficácia das disposições da Deliberação nº 846.
  • Período de silêncio e limitação na negociação de cotas: o artigo 48 da ICVM 400/03 estabelece limitações para o emissor, a instituição intermediária líder e demais prestadores de serviço envolvidos em uma oferta pública de valores mobiliários no que se refere: (i) à divulgação e ao uso de determinadas informações até que a oferta pública seja formalmente divulgada ao mercado; e (ii) à negociação dos valores mobiliários que serão ofertados publicamente até que um comunicado de encerramento seja divulgado ao mercado. Como exceção a essa regra geral, o Ofício-Circular nº 3/2020-CVM/SRE, publicado em 18 de março de 2020, estabelece que, durante a interrupção de uma oferta pública baseada na Deliberação CVM nº 846, tais limitações gerais não precisarão ser observadas até que o emissor e a instituição intermediária decidam retomar a oferta pública, o que deverá ser formalmente comunicado ao mercado.
  • Instrução CVM 476/09: a CVM introduziu as seguintes regras de flexibilização para ofertas públicas com esforços restritos implementadas de acordo com a Instrução CVM 476/09:
  • Restrição à implementação de ofertas públicas com esforços restritos da mesma espécie de valores mobiliários: como regra geral, o artigo 9º da ICVM 476/09 impede que o emissor ou o ofertante de valores mobiliários realize ofertas públicas com esforços restritos da mesma espécie de valores mobiliários dentro do período de quatro meses a partir do término ou do cancelamento da oferta imediatamente anterior. De acordo com o item IV da Deliberação CVM nº 848, de 25 de março de 2020, a eficácia das disposições que estabelecem a restrição à implementação de ofertas públicas com esforços restritos do mesmo tipo de valores mobiliários nos termos da Instrução CVM 476/09 foi interrompida por quatro meses, de 27 de março de 2020 a 27 de julho de 2020. A CVM esclarece, no item 3 do Ofício-Circular nº 4/2020-CVM/SRE, emitido em 9 de abril de 2020, que tal interrupção se aplica a todas as ofertas públicas de valores mobiliários distribuídos com esforços restritos iniciadas durante o período mencionado acima, desde que não exista outra oferta com esforços restritos do mesmo tipo de valores mobiliários em aberto.
  • Restrição à negociação de valores mobiliários: o artigo 13º da ICVM 476/09 estabelece que os investidores que adquirem cotas de fundos de investimento no âmbito de uma oferta pública com esforços restritos somente podem negociá-las em mercados regulamentados após 90 dias da data da respectiva subscrição ou aquisição. Como exceção a essa regra geral, a Deliberação CVM nº 849, emitida em 31 de março de 2020, suspendeu por quatro meses, a partir de 1º de abril de 2020, a eficácia das disposições que estabelecem esse período de lockup. A CVM também esclarece, no item 4 do Ofício-Circular nº 4/2020-CVM/SRE, que tal suspensão aplica-se a valores mobiliários distribuídos no âmbito de ofertas públicas com esforços restritos, que sejam subscritos ou adquiridos: (i) antes da vigência da Deliberação CVM nº 849; ou (ii) durante a vigência da Deliberação CVM nº 849 (1º de abril até 1º de agosto de 2020), mesmo que o período de lockup de 90 dias ultrapasse 1º de agosto de 2020. Como a subscrição ou a aquisição dos valores mobiliários no âmbito de uma oferta pública com esforços restritos pode estender-se por um período prolongado, é possível que parte dos valores mobiliários seja subscrita ou adquirida após 1º de agosto de 2020. Nesse caso, a suspensão somente será aplicável às cotas dos fundos de investimento que sejam subscritas ou adquiridas durante a vigência da Deliberação CVM nº 849, ainda que, teoricamente, o período de lockup se estenda além de 1º de agosto de 2020.

Assembleias gerais

  • Assembleias gerais virtuais: o item VI da Deliberação CVM nº 849 autoriza todos os tipos de fundos de investimento a realizar assembleias gerais ordinárias ou extraordinárias virtuais para aprovar quaisquer matérias durante o ano de 2020, independentemente da existência de disposição nesse sentido nos respectivos regulamentos, desde que todos os cotistas do fundo de investimento sejam devidamente informados e tenham a oportunidade de participar dessas assembleias nos prazos exigidos pela regulamentação aplicável.
  • Cancelamento ou adiamento de assembleias gerais: considerando que as assembleias gerais presenciais conflitam com as determinações do Ministério da Saúde e com as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) em relação ao distanciamento social, a CVM esclarece, no item 4 do Ofício-Circular nº 6/2020/CVM/SIN, editado em 26 de março de 2020, que, tendo em vista o interesse público e as atuais circunstâncias, justifica-se o cancelamento ou o adiamento das assembleias gerais, mesmo que já tenham sido convocadas, nos casos em que não seja possível realizá-las remotamente, seja por meio de reuniões virtuais ou consultas formais, desde que cumpridos os prazos estabelecidos na regulamentação aplicável, conforme prorrogados pela Deliberação CVM nº 848 (como explicaremos a seguir).

Cumprimento de obrigações regulatórias

  • Envio de demonstrações financeiras à CVM: o item IV da Deliberação CVM nº 848 prorrogou por um período adicional de 30 dias o prazo para envio à CVM das demonstrações financeiras auditadas de todos os tipos de fundos de investimento.
  • Aprovação das demonstrações financeiras pelas assembleias gerais
  • Prazo para aprovação das demonstrações financeiras: a CVM prorrogou por três meses o prazo para as assembleias gerais dos fundos de investimento em direitos creditórios (FIDCs), fundos de renda fixa, fundos de ações, fundos multimercado e fundos cambiais (fundos ICVM 555) e fundos de investimento em participações (FIPs) tomarem as contas e aprovarem suas demonstrações financeiras, de acordo com os subitens (c), (k) e (m), respectivamente, do item VII da Deliberação CVM nº 848.
  • Aprovação automática das demonstrações financeiras: como exceção à regra geral, o item VII da Deliberação CVM nº 849 autoriza a aprovação automática de demonstrações financeiras de todos os tipos de fundos de investimento relativas aos exercícios sociais encerrados entre 31 de dezembro de 2019 e 31 de março de 2020, desde que (i) uma assembleia virtual seja convocada nos termos do item VI da Deliberação CVM nº 849 (conforme explicado acima) e não seja instalada devido à ausência de investidores, e (ii) o relatório de auditoria correspondente não contenha uma opinião modificada.
  • Confirmação e atualização do registro de participantes do mercado na CVM: os itens VII, (g), e VIII, (m), da Deliberação CVM nº 849 prorrogaram o prazo para os participantes do mercado (inclusive administradores de fundos de investimento): (i) confirmarem que as informações contidas em seu formulário cadastral na CVM permanecem válidas, o que geralmente precisa ser realizado até 31 de março de cada ano, por um período adicional de três meses; e (ii) atualizarem seu formulário cadastral na CVM, caso haja alguma alteração nas informações então fornecidas, o que geralmente precisa ser realizado em 7 dias úteis contados do fato que deu causa à alteração, por um período adicional de 7 dias úteis.
  • Entrega de relatório de procedimentos e controles internos: os subitens (f), (h), (i), (j) e (l) do item VII da Deliberação CVM nº 848 prorrogaram por três meses o prazo para entrega de relatórios de avaliação e recomendação por parte dos diretores responsáveis pelos procedimentos e controles internos das instituições intermediárias (empresas autorizadas a participar do sistema brasileiro de distribuição de valores mobiliários), depositários centrais (prestadores de serviços de depósito centralizado de valores mobiliários), custodiantes, escrituradores, bem como administradores e gestores de carteiras de fundos de investimento, a seus respectivos órgãos de administração.
  • Entrega do formulário de referência: o subitem (l) do item VII da Deliberação CVM nº 848 prorrogou por três meses o prazo para que administradores e gestores de carteiras de fundos de investimento enviem seus formulários de referência à CVM.
  • Regras de concentração e diversificação: como regra geral, os administradores e gestores de fundos de investimento devem seguir os limites de concentração e diversificação de carteira definidos no regulamento e na legislação aplicável – e estão sujeitos às penalidades aplicadas pela CVM em caso de descumprimento. Em resposta às preocupações dos participantes do mercado quanto ao cumprimento dessa regra no atual cenário de alta volatilidade do mercado e de falta de liquidez de certos ativos, a CVM esclareceu que o prazo para o reenquadramento das carteiras dos fundos de investimento pode ser flexibilizado dependendo das circunstâncias. Nesse sentido, a CVM manifestou o entendimento, no item 2 do Ofício-Circular nº 6/2020/CVM/SIN, de que, em situações em que a imprevisibilidade e a excepcionalidade das condições de mercado impeçam a adoção de medidas de ajuste das carteiras dos fundos de investimento no prazo normalmente exigido pela regulamentação aplicável, a CVM poderia decidir, avaliando cada caso, não aplicar penalidades aos administradores e gestores de carteiras de fundos de investimento se: (i) a não conformidade resultar de fatos exógenos abruptos que causem mudanças imprevisíveis e materiais nas condições do mercado de capitais (por exemplo, condições passivas do mercado); e (ii) o prazo necessário para o reenquadramento da carteira do fundo de investimento for considerado razoável, levando em consideração para tal análise (a) a natureza e a estrutura de liquidez da carteira do fundo de investimento; e (b) as melhores diligências adotadas pelos gestores da carteira para resolver o problema, em conformidade com seus deveres fiduciários.
  • Substituição provisória da referência temporal para o cálculo do valor das cotas emitidas por fundos ICVM 555: alguns fundos de investimento que oferecem liquidez intradiária podem optar em seu regulamento por calcular o valor de suas cotas com base na abertura do mercado. Contudo, devido à volatilidade sem precedentes do mercado de capitais causada pela crise da pandemia do coronavírus, vários fundos de investimento que fizeram essa opção estão enfrentando obstáculos operacionais para manter esse sistema de cálculo. Em resposta às preocupações dos gestores dos fundos de investimento, a CVM esclareceu, no item 3 da Ofício-Circular nº 6/2020/CVM/SIN, que fundos de investimento que ofereçam liquidez intradiária podem – excepcionalmente e durante o período em que transcorrer o momento mais agudo das contingências associadas ao cenário adverso, extremo e imprevisível de mercado – substituir a utilização do valor da cota de abertura pelo sistema tradicional de pagamentos de aplicações e resgates com base no valor da cota de fechamento do mercado. Essa regra somente se aplica, no entanto, se o fundo de investimento em tal situação informar os cotistas do fundo, por meio de fato relevante, sobre os obstáculos operacionais que está enfrentando e a decisão de utilizar provisoriamente essa referência temporal alternativa para o cálculo de cotas.
  • Provisão para direitos creditórios de liquidação duvidosa nos fundos de investimento em direitos creditórios (FIDCs): em resposta às consultas de administradores dos fundos de investimento a esse respeito, a CVM esclareceu, no item 6 da Ofício-Circular nº 6/2020/CVM/SIN, que o atraso no pagamento ou a necessidade de renegociação de um determinado crédito integrante da carteira do fundo não exige necessariamente que o fundo de investimento faça provisão para dívidas de cobrança duvidosa se o administrador concluir que o evento não representa evidência por si só de uma redução no valor recuperável do ativo, mas seja resultado de uma situação excepcional e temporária do mercado. No entanto, a CVM alerta os administradores dos fundos de investimento para o fato de que tal interpretação não deve ser usada como desculpa para evitar a constituição de provisão quando os fatos e as circunstâncias do caso concreto indicarem uma deterioração significativa na capacidade de recuperação do crédito em questão.
  • Troca de documentos entre prestadores de serviços de fundos de investimento: em resposta às consultas de participantes do mercado a esse respeito, a CVM esclareceu, no item 5 do Ofício-Circular nº 6/2020/CVM/SIN, que a regulamentação aplicável não exige que a troca de informações e/ou o intercâmbio de documentos entre administradores fiduciários, gestores de recursos, custodiantes e distribuidores de cotas de fundos de investimento seja necessariamente realizado de modo físico ou presencial. Portanto, do ponto de vista regulatório, não há restrição à troca de documentos e informações entre os participantes do mercado de forma eletrônica. 

Esses são os principais pontos que gostaríamos de destacar em relação à flexibilização da regulamentação aplicável aos fundos de investimento, bem como a seus administradores e gestores, pela CVM, para enfrentar os desafios impostos pela pandemia de covid-19.