O Poder Executivo encaminhou ao Congresso Nacional, no dia 7 de outubro, o Projeto de Lei (PL) nº 5.387/19, que permite concretizar um dos objetivos da atual gestão do Banco Central do Brasil (BCB) mencionados pelo presidente da autarquia em sua cerimônia de posse, em março deste ano: o de “tornar o mercado mais aberto para os estrangeiros, com uma eventual moeda conversível[1] que sirva de referência para a região”.

Submetido pelo presidente do BCB e pelo Ministro da Economia à Presidência da República em 12 de setembro, o PL representa um importante passo rumo à liberalização do regime cambial brasileiro das amarras históricas da herança varguista,[2] já bastante mitigadas, mas em parcial vigência desde 1933.

Dando sequência à Agenda BC+ de modernização do sistema financeiro nacional e em atenção ao diagnóstico feito pelo diretor de Regulação do BCB de que “muitas inovações praticadas nos mercados internacionais não tinham respaldo legal para implementação no Brasil”, o PL propõe alterações de cinco ordens ao regime cambial brasileiro.

Em primeiro lugar e do ponto de vista formal, há uma proposta de reorganização normativa que inclui a consolidação legal de 39 dispositivos que, de alguma forma, versam sobre o regime cambial. Embora permaneçam existindo ao menos outros seis diplomas legais com considerações de relevância sobre a matéria e subsistam também diversas normas infralegais, o Conselho Monetário Nacional (CMN) e o BCB ficam com a missão de adaptar e sanear o que for necessário, razão pela qual o PL prevê a vacatio legis de um ano.

Percebe-se que houve uma alteração na estratégia normativa, a qual apostou em um tom mais principiológico, deixando alto grau de discricionariedade para o CMN e do BCB. Isso demonstra um reconhecimento de que essas entidades têm maior capacidade de adaptação a mudanças de conjuntura, como as registradas atualmente por influência crescente da tecnologia – e de suas tendências – no setor financeiro.

A tabela abaixo sintetiza os normativos legais que poderão ser alterados e revogados, total ou parcialmente, pelo PL 5.387/2019

Normativos afetados pelo PL 5.387/19

Alterados

Parcialmente revogados

Integralmente revogados

Decreto 23.258/1933

Lei 4.182/1920

Decreto-Lei 1.201/1939

Lei 4.131/1962

Decreto 23.258/1933*

Decreto-Lei 9.025/1946

Lei 4.728/1965

Decreto-Lei 2.440/1940

Decreto-Lei 9.602/1946

Lei 8.383/1991

Lei 1.521/1951[3]

Decreto-Lei 9.863/1946

Lei 10.912/2001

Lei 3.244/1957

Lei 156/1947

Lei 11.371/2006

Lei 4.131/1962*

Lei 1.383/1951

 

Lei 4.595/1964

Lei 1.807/1953

 

Lei 4.728/1965*

Lei 2.145/1953

 

Lei 5.409/1968

Lei 2.698/1955

 

Decreto-Lei 1.060/1969

Lei 4.390/1964

 

Lei 6.099/1974

Decreto-Lei 857/1969

 

Decreto-Lei 1.986/1982

Lei 9.813/1999

 

Decreto-Lei 2.285/1986

Medida Provisória 2.224/2001

 

Lei 7.738/1989

Lei 13.292/2016

 

Lei 8.021/1990

 
 

Lei 8.383/1991*

 
 

Lei 8.880/1994

 
 

Lei 9.069/1995

 
 

Lei 9.529/1997

 
 

Lei 11.371/2006*

 
 

Lei 11.803/2008

 
 

Lei 12.865/2013

 
 

Lei 13.292/2016

 
 

Lei 13.506/2017

 

6

24 (*5)

14

*Também constam dos alterados

Do ponto de vista material, o PL 5.387/19 altera a disciplina, sobretudo, de quatro temas. Desses, três guardam correlação direta com a já mencionada herança da Era Vargas, enquanto o quarto e último se refere às recentes exigências de Prevenção à Lavagem de Dinheiro e Combate ao Terrorismo (PLD) e proteção de dados, que tanto impactaram a agenda regulatória do sistema financeiro nos últimos anos.

Tais alterações são tratadas em mais detalhes no quadro abaixo.

Principais alterações materiais constantes do PL 5.387/19

Tema

Como é

Mudança proposta

Curso forçado

As hipóteses de estipulação de pagamento em moeda estrangeira de obrigações exequíveis no território nacional estão restritas aos cinco incisos do art. 2º do Decreto-Lei nº 857/69

As hipóteses de estipulação de pagamento em moeda estrangeira de obrigações exequíveis no território nacional foram ampliadas para os oito incisos do art. 13 do PL 5.387/19. Foram incluídos nessas hipóteses os contratos de arrendamento mercantil celebrados entre residentes com base em captação de recursos no exterior. Além disso, o PL deixa claro que as operações de exportação indireta também estão excetuadas da restrição. O CMN poderá regular outras situações

Repressão financeira[4]

O art. 4º, “a”, da Lei nº 1.521/1951 classifica como crime a cobrança de ágio superior à taxa oficial de câmbio sobre quantia permutada por moeda estrangeira

O disposto no art. 4º, “a”, da Lei nº 1.521/1951 não mais se aplica às operações de câmbio efetuadas de acordo com o PL 5.387/19 (art. 16)

Controles de capitais

Atualmente, a Circular BCB nº 24/1966 veda às instituições financeiras, por qualquer forma, aplicar ou promover a colocação, no exterior, de recursos coletados no país

Apenas as pessoas elencadas no art. 187 da Circular BCB nº 3.691/2013 podem ter conta em moeda estrangeira no Brasil.

O art. 50 da Lei nº 4.182/1920 veda as operações de “jogo sobre câmbio” (ainda que, em algumas oportunidades, o CRSFN – Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional – tenha entendido que tal dispositivo não vigora por falta de tipificação adequada)[5]

A manutenção de recursos no exterior, em moeda estrangeira, relativos ao recebimento de exportação brasileira de mercadorias e serviços, precisa observar limites regulamentares.

Autoriza instituições bancárias a investir ou realizar operações de crédito e financiamento no exterior com recursos captados no Brasil, observada a regulamentação pertinente (art. 15)

Apesar de a matéria já ser regulada pelo BCB, o PL deixa claro que compete a essa autarquia regulamentar quem pode deter conta em moeda estrangeira no Brasil e segundo quais requisitos e procedimentos isso é possível (art. 5º).

Revoga a vedação a operações de “jogo sobre o câmbio” (art. 26).

A manutenção de recursos no exterior, em moeda estrangeira, relativos ao recebimento de exportação brasileira de mercadorias e serviços não mais precisa observar limites regulamentares (art. 25).

Favorece o uso do real em negócios internacionais, uma vez que permite, em nível legal, o recebimento de ordens de pagamento de terceiros do exterior a partir de contas em reais mantidas no Brasil e tituladas por bancos estrangeiros. A matéria já foi regulada pelo BCB por meio da Circular nº3.691, mas a medida favorece o desenvolvimento do mercado de correspondência bancária internacional (art. 6º).

O conceito de capital estrangeiro no país se torna mais amplo, sendo estendida a garantia de não discriminação (art. 9º).

O BCB pode prever situações em que a compensação privada de créditos ou valores entre residentes e não residentes seja autorizada (art. 12).

O CMN e o BCB podem autorizar outros tipos de instituições a efetuar remessas internacionais de moeda nacional ou estrangeira (art. 14).

As exigências e vedações ao comércio de moeda estrangeira não mais se aplicam a operações de compra e venda realizadas entre pessoas físicas, de forma eventual e não profissional, até US$ 1 mil. Tal previsão pode impulsionar o desenvolvimento de plataformas peer-to-peer para negociação de câmbio, como visto em outros países (art. 18).

Revoga a caracterização de determinadas operações como ilegítimas (art. 26).

Deveres informacionais

As instituições sujeitas à regulação do BCB devem observar uma série de requisitos de cadastro, registro e monitoramento, com foco em PLD, mas há poucas considerações de proporcionalidade na norma e há empresas de tecnologia cuja sujeição à regulação do BCB é ainda incerta.

A Lei Complementar nº 105/2001 e a Lei nº 13.709/2018 impõem uma série de restrições e obrigações ao tratamento e compartilhamento de dados de usuários do sistema financeiro, não havendo previsões específicas de regime diferenciado para extração de dados macroeconômicos e de pesquisa.

Explicita em diversas oportunidades a obrigatoriedade de cautelas de cadastro, registro e monitoramento, com foco em PLD. Essas previsões constam de passagens nas quais o PL altera o regime vigente no sentido de conferir maior liberdade de atuação aos agentes privados, pelo que enfatiza a proporcionalidade entre direitos e deveres.

O BCB pode requerer de residentes as informações necessárias para compilar estatísticas macroeconômicas oficiais. Essas informações poderão ser disponibilizadas pelo BCB para subsidiar pesquisas, desde que resguardado o sigilo do titular (art. 11).

Ao regulamentar a obrigatoriedade de fornecimento de informações, o BCB deverá levar em conta a razoabilidade do custo de observância.

Como se pode observar na tabela acima, há uma preocupação maior com a proporcionalidade das exigências regulatórias, o que também é fruto dos seguidos questionamentos feitos por novos entrantes no sistema financeiro não só a respeito das barreiras de entrada historicamente elevadas, como também sobre a racionalidade e razoabilidade das exigências regulatórias, que por vezes se mostram anacrônicas.

Já objetivos mais ousados, como a conversibilidade do real e a possibilidade de pessoas físicas deterem contas em moeda estrangeira no Brasil, seguem distantes do regime proposto pelo PL, como reconheceu o próprio presidente do BCB.

Dessa forma, mais do que ser revolucionário em seu conteúdo, o PL 5.387/19 se concentra em conferir à autoridade monetária condições de levar a cabo a missão de liberalizar o mercado cambial brasileiro quando – e se – as condições políticas e macroeconômicas necessárias o permitirem.


[1] Até o fim do padrão-ouro, em 1914, o conceito de moeda conversível guardava relação com aquelas que podiam ser trocadas por ouro, de acordo om uma taxa oficial fixa. Posteriormente, a ideia de conversibilidade deixou de ser relacionada à possibilidade de troca de uma determinada moeda por ouro, passando à troca de uma moeda por outra, a uma taxa de câmbio de paridade. De 1946 a 1978, o Fundo Monetário Internacional (FMI) consubstanciou, no artigo VIII de seu Convênio Constitutivo, o conceito de conversibilidade, importando na: (i) ausência de restrições a pagamentos por transações correntes; (ii) não aplicação de práticas monetárias discriminatórias; e (iii) na possibilidade de conversão de saldos de suas moedas em poder de autoridades monetárias de outros países. Em 1978, contudo, sob o sistema de taxas de câmbio flutuantes, o conceito de conversibilidade ficou mais fluído e foi substituído, no Convênio Constitutivo do FMI, pelo de moeda livremente utilizável (freely usable currency). Nos termos do art. XXX, “f” do Convênio Constitutivo, moeda livremente utilizável é aquela amplamente utilizada para fazer pagamentos de transações internacionais e amplamente negociada nos principais mercados organizados. De forma mais corriqueira, contudo, o conceito de moeda conversível é atualmente utilizado para definir aquela moeda sobre a qual não pairam restrições de movimentação, comercialização e uso pelos países emissores.

[2] Em especial, destacam-se: (i) o Decreto nº 22.626/1933, que limitou as taxas de juros e contribuiu para o estabelecimento de um regime de repressão financeira (vide nota de rodapé 4) no Brasil; (ii) o Decreto nº 23.258/1933, que classifica diversas modalidades de operações cambiais como ilegítimas, consagrando os controles cambiais rígidos; e (iii) o Decreto nº 23.501/1933 (revogado e parcialmente substituído pelo Decreto-Lei nº 857/1969), que vedou a indexação de contratos à moeda estrangeira ou ao ouro, impondo o curso forçado da moeda nacional.

[3] Parcialmente revogado de forma tácita, com a remoção da efetividade parcial.

[4] De acordo com o conceito idealizado por Edward Shaw, repressão financeira é o fenômeno verificado quando o governo limita o livre fluxo financeiro para reduzir a remuneração obtida pelos poupadores e favorecer certos tomadores de recursos. Para tanto, o governo limita a possibilidade de investimentos em outras jurisdições, pelo que a repressão financeira normalmente é acompanhada por contas de capital fechadas e limites rígidos a aplicações financeiras no exterior.

[5] Vide os acórdãos referentes aos recursos 4.298, 4.339, 4.341, 4.380 e 4.400.