A pandemia de covid-19 gerou reflexos sobre a atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) na aplicação da Lei nº 12.529/11 (Lei de Defesa da Concorrência). O órgão tem mantido suas atividades com algumas adaptações na rotina. Boa parte do quadro de funcionários está em trabalho remoto, as reuniões e audiências têm sido feitas por meio de vídeo ou teleconferência, e o Tribunal Administrativo discute a possibilidade de passar a realizar sessões de julgamento de forma virtual.

Diante da Medida Provisória nº 928, de 23 de março, o Cade esclareceu que não correrão prazos processuais em desfavor dos investigados em Processos Administrativos para Imposição de Sanções por Infrações à Ordem Econômica; Procedimentos Administrativos para Apuração de Atos de Concentração (Apac) e Processos Administrativos para Imposição de Sanções Processuais Incidentais. No entanto, a autarquia continuará seu trabalho nesses casos, praticando os atos processuais que lhe competem.

Os prazos para análise de atos de concentração continuarão a correr normalmente. Também correrão, para o Cade e para as partes, os prazos em inquéritos administrativos; procedimentos preparatórios; acordos de leniência; Termos de Compromisso de Cessação (TCC); Acordos em Controle de Concentrações (ACC); Termos de Compromisso e Desempenho e Consultas.

O presidente da autarquia, Alexandre Barreto, esclareceu em nota recente que o Cade está atento às dificuldades pelas quais todos os setores passam e será razoável na análise de demandas específicas levadas a seu conhecimento, inclusive pedidos de dilação de prazo. Disse ainda que o Cade permanecerá vigilante para evitar abusos e ágil para ajudar a reaquecer a economia o quanto antes.

Diante desse quadro, abordamos a seguir perspectivas nas áreas de controle de condutas anticompetitivas e análise de atos de concentração.

Controle de condutas

No que tange ao controle de condutas anticompetitivas, é importante ter em mente que a declaração do Cade não implica uma flexibilização da aplicação da Lei de Defesa da Concorrência, como já ocorreu no exterior. As autoridades da Grã-Bretanha, por exemplo, divulgaram formalmente a intenção de não tomar medidas diante da cooperação legítima entre empresas, ressaltando, contudo, que não tolerarão medidas inescrupulosas que usem a crise como desculpa para “práticas colusivas não essenciais”.

Empresas concorrentes que precisem discutir mecanismos de cooperação para enfrentar a crise no Brasil, como planejar aumento de produção, comprar insumos conjuntamente, compartilhar ativos de produção ou distribuição ou dividir certos custos operacionais, devem buscar aconselhamento jurídico especializado para avaliar tanto os riscos envolvidos no plano – que dependerá em larga escala das suas justificativas e da inexistência de alternativas menos lesivas à concorrência – quanto as medidas disponíveis para mitigá-los.

Nesse contexto, é possível considerar a execução de um “protocolo antitruste”, prática usual em operações de M&A, para esclarecer o que pode e o que não pode ser discutido; regular o fluxo de informações sensíveis, como custos, nível de ociosidade, volume de produtos em estoque, principais fornecedores e termos de contratos com eles celebrados; e restringir o conjunto de executivos ou funcionários que podem ter acesso a tais informações, sob compromissos de confidencialidade.

A crise pode ser tão profunda em alguns setores, como o aéreo, que mecanismos de cooperação duradouros entre concorrentes talvez sejam necessários. Em situações dessa natureza, deve-se avaliar a necessidade de submeter tais arranjos à aprovação prévia do Cade como contratos associativos, assim entendidos aqueles com duração igual ou superior a dois anos e que estabeleçam empreendimento comum para exploração de atividade econômica, desde estabeleçam o compartilhamento dos riscos e resultados da atividade econômica que constitua seu objeto.

É possível também avaliar a conveniência de apresentar uma consulta ao Tribunal Administrativo do Cade sobre a licitude de atos, contratos ou estratégias empresariais concebidas para atravessar a crise. O prazo legal máximo para julgamento desses casos é de 120 dias, contados a partir da distribuição da consulta a um conselheiro relator. No entanto, a média de tempo de análise das consultas mais recentes é de aproximadamente 60 dias, tendo havido casos analisados em apenas 14 dias – agilidade que se espera do Cade em procedimentos semelhantes no contexto da pandemia.

Não se deve esperar, contudo, que o Cade venha a tolerar os chamados “cartéis de crise”, ou seja, acordos entre concorrentes em um mercado específico para restringir a produção e/ou reduzir a capacidade em resposta a uma crise na indústria causada pela desaceleração econômica nacional, mundial ou setorial, que envolva diminuição da demanda e excesso de capacidade.

Também não se deve esperar condescendência do Cade com práticas abusivas. A autarquia não tem competência para regular preços, mas pode investigar empresas que pratiquem preços excessivamente altos, ainda que tradicionalmente tenha demonstrado maior preocupação com práticas que envolvam a criação de dificuldades para concorrentes do que a exploração do consumidor. Isso se explica, em grande parte, pela complexidade de se estabelecer um critério para mensurar o que seria preço abusivo, ou seja, qual seria o percentual, a margem ou o preço final praticado que poderia ser considerado abusivo. No entanto, diante da repentina elevação na demanda por determinados produtos relacionadas à prevenção da covid-19 – que tiveram aumento exponencial de preços– o Cade já anunciou e iniciou uma ampla investigação sobre o assunto, e está coletando informações de secretarias de saúde, fabricantes de produtos médico-farmacêuticos, hospitais, distribuidores e varejistas. É possível que investigações semelhantes em outros setores sejam iniciadas.

A pandemia pode afetar também o andamento da negociação de acordos de leniência e termos de compromisso de cessação (TCC), e até mesmo o cumprimento de acordos já celebrados.

A investigação interna das empresas poderá sofrer atrasos em decorrência, por exemplo, da limitação de reuniões presenciais e do acesso a arquivos salvos em equipamentos que estejam na residência de funcionários em trabalho remoto. Podem surgir, ainda, impasses relacionados à entrega de documentos ao Cade, que ocorre presencialmente em função de preocupações com confidencialidade. Superado esse obstáculo, o período de análise de documentos e relatórios apresentados ao Cade também poderá ser mais longo que o usual. Diante disso, é recomendável renegociar prazos com o Cade ou até mesmo solicitar a suspensão do andamento da negociação.

A renegociação pode ser necessária também em casos de TCC já celebrados e com obrigações pecuniárias ou comportamentais. Empresas podem se ver impossibilitadas de realizar o pagamento tempestivo das parcelas de contribuição pecuniária no prazo fixado – usualmente de até dois anos ou, excepcionalmente, quatro anos ou mais. Podem ainda se deparar com obstáculos imprevistos para o cumprimento de obrigações não pecuniárias, como a implementação de programas de compliance, devido às restrições a treinamentos presenciais, viagens de executivos, por exemplo, como informaram as empresas Basso e Valbrás em manifestação recente apresentada ao Cade. Em casos assim, é de extrema importância que os signatários de TCC procurem negociar, com antecedência, dilações com o Cade, a fim de evitar o risco de multa diária por descumprimento do acordo e, em última instância, perder os benefícios do TCC.

Controle de concentrações

As circunstâncias atuais apontam para a possibilidade de aumento do tempo de aprovação de operações e para a necessidade de reflexão cuidadosa do Cade sobre o impacto das suas decisões.

O trabalho remoto adotado por muitas empresas pode afetar a coleta de dados necessários para a notificação, a manifestação como terceiro interessado e a resposta a ofícios enviados pelo Cade a clientes, fornecedores e concorrentes das partes da operação em análise. Espera-se que, apesar dessas dificuldades, o Cade priorize os atos de concentração, não permita que os prazos médios de análise se ampliem e, principalmente, seja sensível às demandas em operações entre empresas que enfrentarem dificuldades extraordinárias para a manutenção dos seus negócios.

É provável que os pedidos de autorização para que as partes consumem uma operação antes de decisão final do Cade, de maneira precária e liminar, se tornem mais frequentes no contexto da crise. A nossa lei impõe critérios estritos para tanto: as partes interessadas precisam demonstrar que (i) não há risco de dano irreparável às condições de concorrência; (ii) as medidas são integralmente reversíveis; e (iii) há risco iminente de prejuízos financeiros substanciais e irreversíveis caso a autorização precária não seja concedida.

O Cade tem sido bastante rigoroso no julgamento dos pedidos de autorização precária até o momento, concedida em um único caso (Ato de Concentração 08700.007756/2017-51, referente ao aumento, de 40% para 100%, da participação da Excelence B.V. na Rio de Janeiro Aeroporto S.A., detentora de 51% da Concessionária Aeroporto Rio de Janeiro S.A., que explora a concessão no Aeroporto do Galeão – o Cade concluiu que, na ausência de autorização precária, a concessionária não teria condições financeiras de quitar parcela de pagamento de vencimento iminente no valor de R$ 1,168 bilhão e deveria cessar suas atividades, afetando o funcionamento do aeroporto até que nova licitação fosse realizada).

Outro ponto sensível que demandará a reflexão do Cade diz respeito à possibilidade de ingerência do comprador sobre a atuação da empresa-alvo, no período entre signing e closing, para garantir a sobrevivência do negócio durante uma situação emergencial. Isso pode ser feito por meio de mudanças na administração da empresa, uso de ativos para antecipar sinergias ou até mesmo adiantamento total ou parcial do preço. Tal ingerência poderia ser vista como consumação prévia e indevida da operação, sujeitando as partes às penalidades de gun jumping, notadamente multa que pode chegar a R$ 60 milhões.

Em um momento excepcional e desafiador como o atual, espera-se que o Cade mantenha uma postura aberta, flexível e razoável em relação aos atos de concentração, contribuindo para atenuar os efeitos da crise e melhorar as condições de recuperação da economia, removendo barreiras que possam impedir ou retardar essa retomada.