Em recente entendimento no âmbito de recurso contra decisão que negou a penhora de imóvel classificado como bem de família (agravo de instrumento 2075933-13.2021.8.26.0000), a 16ª Câmara de Direito Privado (CDP) do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) decidiu por maioria de votos a favor da possibilidade excepcional de afastamento da impenhorabilidade do bem de família (com valor vultoso declarado de R$ 24 milhões), ainda que destinado à moradia do devedor.

Aplicando os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, os julgadores entenderam que o afastamento da impenhorabilidade prevista na Lei 8.009/90 é possível, desde que mantido o objetivo da lei e o patrimônio mínimo para que o devedor mantenha uma vida digna (nesse caso, estipulado em 10% do valor do bem original) a fim de que possa adquirir outro imóvel para sua moradia.

O instituto do bem de família visa a proteção legal e preservação de um único imóvel destinado à residência de entidade familiar que permita o exercício concomitante dos direitos fundamentais à moradia, à dignidade da pessoa humana e ao mínimo existencial. Na hipótese de a entidade familiar ser proprietária de mais de um imóvel destinado a sua residência, a lei determina que a proteção indicada fica restrita ao bem de menor valor ou àquele em cuja matrícula foi registrada a instituição do instituto, mas sem estabelecer valor máximo para a instituição do bem de família.

A proteção ao direito à moradia prevista na lei constitui direito social incluído no art. 6º da Constituição Federal e, ainda que seja classificada como proteção a direito fundamental, não tem caráter absoluto, podendo ser contraposta à existência de outros direitos e princípios constitucionais. Ao flexibilizar a norma legal, o entendimento evidenciado na decisão reacendeu a discussão sobre a manutenção da impenhorabilidade do imóvel residencial próprio ou de entidade familiar a despeito de seu valor.

Segundo a decisão, interpretação literal da Lei 8.009/90 poderia levar ao entendimento de se manter a impenhorabilidade do bem de família, independentemente do valor. No entanto, de acordo com a maioria dos julgadores, a lei deve ter uma interpretação em linha com as disposições do artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e do art. 8º do Código de Processo Civil, atendendo aos fins sociais a que a lei se destina e às exigências do bem comum, observados os princípios da proporcionalidade, razoabilidade, legalidade e eficiência.

A decisão da 16ª CDP do TJSP buscou dar efetividade aos dispositivos acima mencionados, facultando ao magistrado a possibilidade de ultrapassar a aplicação da letra da lei e buscar o sentido final da legislação. Para justificar a decisão, o desembargador responsável pelo voto vencedor fez questionamentos retóricos sobre a proteção do instituto do bem de família se estender a imóvel cuja fração de valor supere o patrimônio total da maioria dos brasileiros, tendo entendido que não há necessidade de imóvel no valor de R$ 24 milhões para preservar a dignidade e mínimo existencial do devedor.

O entendimento que prevaleceu, portanto, foi de que a proteção do bem de família, quando de alto valor, deve ser mitigada para garantir a efetivação do direito do credor de receber o valor que lhe é devido. Deve ser resguardado, no entanto, o direito à moradia e dignidade do devedor, por meio da segregação de um percentual do produto da futura arrematação para que ele adquira novo imóvel, este sim impenhorável nos termos da Lei 8.009/90.

A interpretação favorável ao credor ainda representa entendimento isolado, mas, no longo prazo, pode fazer parte de uma mudança na jurisprudência dos tribunais do país, estabelecendo um limite máximo no valor do imóvel a ser protegido pelo instituto do bem de família. Para maior segurança jurídica, no entanto, a situação ideal é sedimentar as discussões envolvendo o bem de família por meio da regulação mais precisa em lei, seja para impor novos limites, seja para assegurar que a proteção do instituto não encontra barreiras além daquelas dispostas no texto legal.