As distorções de tratamento em razão do gênero, em especial no mercado de trabalho, são, sem dúvida, um tema da maior atualidade, com reiterados estudos que demonstram os obstáculos estruturais e sociais enfrentados pelas mulheres para atingirem a tão almejada igualdade de oportunidades e de tratamento, não só no campo profissional, mas também no social.

São também inúmeros os estudos que demonstram os benefícios da diversidade nos ambientes corporativos e na produtividade de uma empresa, mas ainda estamos distantes da equidade na evolução das carreiras profissionais entre homens e mulheres. As mulheres estão em menor número que os homens nos cargos e funções de liderança, não apenas nas empresas, mas também na função pública e na política.

Embora a eliminação das causas dessa distorção não dependa somente do legislador, um sistema jurídico orientado para a equidade tem um papel fundamental nesta missão. O contrário também ocorre, ou seja, um sistema que aprofunde as distorções é imensamente danoso e deve ser exposto.

Nesse contexto e exemplificando os benefícios de um sistema jurídico orientado à equidade, merece destaque a recente declaração de inconstitucionalidade, pelo STF, da incidência de contribuição previdenciária patronal sobre o salário-maternidade. A decisão foi proferida no julgamento do Recurso Extraordinário nº 576.967/PR sob o regime da repercussão geral. O que ela julga e condena, em essência, é a discriminação e o preconceito que causam os encargos discriminatórios decorrentes da contratação de uma mulher, ou seja, na base das carreiras corporativas: contratar mulheres é, sem dúvida, mais caro do que contratar homens. E o STF deu um passo na neutralização dos danos de um sistema não equitativo.

Sob o ponto de vista puramente técnico, assentou-se que, por ser o salário-maternidade um benefício previdenciário, está ausente a natureza de contraprestação ao trabalho prestado. Isso motivou o entendimento de que o salário-maternidade não pode integrar a base de cálculo da contribuição previdenciária a cargo do empregador.

O julgamento trouxe importante reflexão pela Suprema Corte quanto à aplicação, em última instância, dos princípios que norteiam o Estado democrático de direito. Há um direcionamento específico no voto condutor, da lavra do ministro Luís Roberto Barroso, para:

  • a necessidade de desoneração da mão de obra feminina como forma de efetivação do princípio da isonomia entre homens e mulheres;
  • a impossibilidade de oneração do indivíduo no sistema previdenciário brasileiro em razão de circunstância ou fato da vida que lhe seja peculiar por motivo biológico, no caso, a capacidade exclusiva das mulheres de engravidar;
  • a exclusão de tributação sobre o salário-maternidade privilegiar a isonomia, a proteção da maternidade e da família, além da diminuição da discriminação entre homens e mulheres no mercado de trabalho.

Apesar de a análise estar restrita ao contexto das relações de trabalho, o voto chama a atenção para outro tipo de distinção de tratamento entre homens e mulheres ainda não muito discutida no Brasil: a tributação mais onerosa às mulheres do que aos homens.

Recentemente, o Grupo de Pesquisas sobre Tributação e Gênero, vinculado ao Núcleo de Direito Tributário da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas,[1] elaborou profunda análise em estudo denominado “Reforma Tributária e Desigualdade de Gênero”,[2] que apresentou sugestões de alterações às propostas de reforma existentes com o objetivo de contemplar a promoção da igualdade de gênero pelo instrumento da tributação.

Usualmente nomeados como tax women ou pink tax, os estudos sobre o tema expõem o tratamento desigual na precificação de produtos destinados ao público feminino por nítida estratégia de marketing,[3] o que atrai sobre eles a incidência de alta carga tributária.

A carga tributária acentuada se dá em razão da classificação desses produtos como não essenciais ou supérfluos, embora possam estar relacionados: (i) a necessidades fisiológicas da mulher; (ii) ao empoderamento feminino; ou (iii) a exigências socialmente impostas à mulher.

Some-se a isso o fato de que, na maior parte das situações, os produtos de uso essencial por mulheres não têm correspondente no mundo masculino. É o caso, por exemplo, dos absorventes higiênicos. Esse item é de uso indispensável em razão da condição fisiológica da mulher. Não há substituto com carga tributária inferior.

De acordo com o “impostômetro”, em 14/2/2021,[4] a carga tributária incidente sobre o absorvente higiênico era de 34,48%, comparável a produtos como goma de mascar (34,24%) ou superior a outros, como coelho de pelúcia (29,92%).

O reflexo direto da alta tributação é a inacessibilidade desses produtos para as mulheres de baixa renda, o que não é amenizado por oferta no sistema público de saúde. Uma pesquisa realizada por uma marca de absorventes[5] com 9.062 mulheres demonstra que, na faixa de 12 a 14 anos, 22% das meninas dizem não ter acesso a produtos confiáveis relacionados à menstruação por não terem dinheiro ou porque os produtos não são vendidos em locais próximos às suas residências. O percentual sobe para 26% entre mulheres de 15 a 17 anos e cai para 19% na faixa entre 18 a 25 anos.

Além de afetar a própria saúde da mulher, a alta tributação incidente sobre esse produto de consumo indispensável implica, indiscutivelmente, nítida restrição ao convívio social, profissional e educacional. De fato, sem acesso ao item e obrigadas a recorrer a substitutos não adequados, muitas mulheres e adolescentes deixam de sair de casa por medo, insegurança e desconforto.

Com impactos igualmente relevantes no contexto social e no próprio mercado de trabalho, é a alta carga tributária imposta aos produtos cosméticos, em especial à maquiagem. De acordo com o impostômetro em 14/2/2021, a carga tributária incidente sobre itens de maquiagem variava de 51,41% (nacionais) a 69,53% (importados). Em contraponto, era bem mais suave é a carga tributária incidente sobre produtos destinados ao público masculino, como espumas de barba (42,56%); ternos (34,67%) ou gravatas (35,48%).

A discrepância se torna mais evidente quando a tributação sobre maquiagens é comparada àquela incidente, por exemplo, sobre uma camisa de time de futebol (34,67%) ou um barbeador elétrico (48,11%).

A origem está na falha classificação de itens de maquiagem como “produtos supérfluos” e não se explica, senão pelo distanciamento das autoridades tributárias e do legislador em relação às necessidades dos universos social e profissional femininos. Mulheres que lidam diretamente com o público em seu trabalho, como recepcionistas, secretárias, vendedoras, aeromoças ou mesmo as que assumem altos cargos em empresas, como diretoras, gerentes, gestoras, são compelidas, por motivos culturais e códigos sociais ou corporativos, a se apresentarem maquiadas.

Há casos reconhecidos em precedentes da Justiça do Trabalho em que o empregador deve suportar o ônus decorrente do uso de maquiagem por ser ela imposta para o exercício da função, como é o caso das aeromoças. Há, contudo, códigos de vestimenta e apresentação que, embora não escritos, são igualmente impostos e obedecidos de forma incontestável pelas mulheres nos mais diversos segmentos sociais, cargos e posições, dentro e fora do contexto de trabalho.

Além do atendimento aos códigos sociais e profissionais, a função da maquiagem está a serviço do empoderamento feminino, por elevar a autoestima da mulher e fazer com que se sinta mais segura para o desempenho de suas atividades profissionais e sociais. Um rímel e um batom muitas vezes bastam para que uma mulher se sinta mais adequada na atividade profissional ou, até mesmo, em um evento social.

Nesse sentido, a maquiagem pode e é de fato utilizada por muitas mulheres como proteção contra a desigualdade de gênero enraizada na nossa sociedade. Rejeita-se, assim, a sua qualificação como item supérfluo. Ao contrário, de forma geral é essencial para a mulher, por dar suporte à autoestima e, ao mesmo tempo, permitir o cumprimento dos códigos sociais e profissionais.

Esse tema tem sido frequentemente debatido nas redes sociais e na mídia em geral, com grande engajamento por parte das marcas produtoras de produtos cosméticos.

Além do benefício associado à autoestima das mulheres, o próprio mercado de trabalho relacionado ao setor de maquiagem emprega, em sua grande maioria, mulheres autônomas, provendo-as de capacidade financeira. Esse fato aponta para outro fator de discriminação social, que decorre das graves consequências da alta carga tributária imposta a esses produtos.

Com essas breves ponderações, percebe-se como a legislação tributária interfere diretamente – e, em certa medida, incentiva – a diferenciação entre gêneros, ainda que de forma velada e pouco debatida. Isso porque os princípios da seletividade e da essencialidade estão sendo aplicados de forma equivocada e distanciada da realidade atual da sociedade, e não pautados pelo imperativo da equidade de gêneros.

Embora significativos e emblemáticos, os dois exemplos aqui abordados não esgotam o tema da distinção entre gêneros à luz da tributação. Outros exemplos igualmente relevantes vêm sendo debatidos e aprofundados pelos estudos tax women ou pink tax e, ainda, pelo Grupo de Pesquisas sobre Tributação e Gênero, vinculado ao Núcleo de Direito Tributário da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.[6]

É, portanto, indispensável aprovar projetos direcionados à efetivação de um sistema tributário justo e neutro, que preserve e promova a igualdade substancial de gêneros, exatamente como asseguram os artigos 3º, 5º, I, 145, §1º, e 150, II, da Constituição Federal.


[1] Grupo coordenado pelas professoras Tathiane Piscitelli, Núbia Nette Alves Oliveira de Castilhos, Andalessia Lana Borges Camara e Simone Castro.

[2] https://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/arquivos/reforma_e_genero_-_sumario_executivo.pdf

[3] Esse é o caso, por exemplo, de lâminas de barbear que, apesar de funcionalidade semelhante, recebem preços mais altos quando direcionadas ao público feminino. No mesmo sentido, xampus destinados às mulheres tendem a ser mais caros, embora produzidos pelas mesmas marcas dos destinados aos homens.

[4] https://impostometro.com.br/home/relacaoprodutos

[5] https://revistamarieclaire.globo.com/Comportamento/noticia/2020/01/isencao-de-impostos-sobre-absorventes-menstruais-e-nova-luta-feminista.html

[6] Neste contexto, estão os exemplos do regime de tributação sobre pensão alimentícia para sustento dos filhos, dos impactos do sistema regressivo de tributação sobre as mulheres, com a concentração da carga tributária no consumo (e não na renda) e da tributação sobre os bens de primeira necessidade da casa, muitas vezes sob responsabilidade da mulher.