Os decretos publicados pelo governo federal recentemente continuam a ser bastante criticados. Surgiram, inclusive, propostas de decretos legislativos para cessar os efeitos dos aumentos nas alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Do ponto de vista jurídico, um dos aspectos mais frágeis desses decretos governamentais é a ampliação da incidência do IOF para abranger as chamadas operações de risco sacado.
De forma simplificada, risco sacado é a transação em que uma instituição financeira adianta ao fornecedor o pagamento de uma dívida que seu cliente (o comprador) só pagaria no futuro. Para isso, usa-se a reputação de crédito do comprador como garantia, permitindo ao fornecedor receber à vista e ao comprador manter seus prazos.
Essas operações são bastante importantes especialmente para o setor varejista porque beneficiam os três lados: o fornecedor recebe antes, o comprador mantém seus prazos de pagamento alongados e a instituição financeira intermedia tudo, assumindo o risco da empresa que paga (o sacado).
Por mais que se tenha aplicado mal essa prática recentemente devido a questões que nada têm a ver com a própria essência dessa solução financeira, não se pode admitir que sua tributação extrapole os limites constitucionais.
É inegável que o IOF deve incidir exclusivamente sobre operações de crédito em que a coobrigação – a partilha do risco de inadimplência – é um elemento essencial para configurar a operação. O cerne da questão é simples e inegável: o IOF deve incidir exclusivamente sobre operações de crédito, e não sobre a simples cessão de direito.
Na interpretação consolidada pela Receita Federal, fica claro que a configuração de uma operação de crédito nas operações de cessão de direitos demanda, entre outros elementos, a existência de coobrigação – ou seja, o compartilhamento do risco de inadimplência entre as partes. Sem essa característica, o ato praticado configura uma simples cessão de direito, sem o comprometimento inerente que justifique a incidência do IOF.
Para além de uma leitura estrita do dispositivo legal, essa distinção preserva os princípios da legalidade e da segurança jurídica que regem nosso sistema jurídico e tributário. Ao impor a incidência do IOF em situações que não se enquadram na definição de operação de crédito, os decretos editados recentemente extrapolam os limites da competência tributária delineada pela Constituição Federal. Configuram uma cobrança que podia ser prevista apenas em outro tipo de hipótese.
Essa interpretação extensiva, além de desvirtuar o objetivo original do imposto, coloca em xeque a própria estabilidade das relações de mercado que se valem dessa importante ferramenta financeira.
A tentativa de transmutar toda e qualquer cessão de direito em operação de crédito apenas para ampliar a base de arrecadação representa mais um retrocesso, põe em risco a clareza e a eficiência do sistema fiscal brasileiro e gera mais litígio e incertezas para todos os envolvidos.
É urgente que o governo federal reavalie a constitucionalidade dos decretos em questão e reconheça que o IOF não pode incidir sobre as operações de risco sacado em que a parte cedente não tenha coobrigação.
Somente ao se preservar a delimitação entre operações de crédito e cessões de direito será possível garantir que o IOF atue conforme seu escopo legal e seja aplicado de acordo com os preceitos constitucionais, evitando a imposição arbitrária de tributos. Essa análise crítica é essencial para assegurar que medidas emergenciais ou justificadas pela necessidade de arrecadação não sirvam de pretexto para a ampliação indevida do alcance do imposto.