A dedutibilidade de despesas com amortização de ágio da base de cálculo do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social (CSLL)[1] é tema que, há muito, se discute nas sessões de julgamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

Uma análise apurada dos precedentes recentes permite afirmar que, apesar da maturidade da discussão, a jurisprudência ainda não está consolidada quanto à definição dos limites da restruturação societária considerada válida para fins de dedutibilidade do ágio.

O Carf, tribunal administrativo reconhecido pela qualidade técnica e aprofundamento de suas discussões, sempre teve em pauta debates muito relevantes para os contribuintes. Em relação ao ágio e matérias correlatas, verifica-se que o histórico da jurisprudência se desenrola em três fases distintas, cujos resultados foram definidos conforme os critérios de julgamento adotados em cada momento.

A primeira fase ocorreu entre os anos 2000 e início de 2015. Nesse período, deu-se a transição do Conselho de Contribuintes para o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, atual Carf, criado em 2008.[2] Nessa primeira fase, o critério de validação adotado pela corte administrativa assentava-se em três requisitos:

  • operações de ágio formadas em aquisições entre partes não relacionadas;
  • o chamado “sacrifício econômico” – como veio a ser cunhada pela corte a onerosidade com pagamento em dinheiro; e
  • a presença de laudo que suportasse a rentabilidade futura da participação adquirida.

Nessa fase, portanto, valorizou-se essencialmente a presença de uma operação entre partes não relacionadas, ainda que seguida de reestruturações internas.

Condenou-se com a pena da indedutibilidade as operações cunhadas como “ágio interno”, ou seja, o ágio formado em aquisições de participação societária sem a presença de partes independentes. Os precedentes existentes à época foram proferidos por turmas ordinárias, pois a Câmara Superior de Recursos Fiscais ainda não havia analisado o tema.

Com a retomada das sessões de julgamento no fim de 2015, após a suspensão das sessões do órgão por quase um ano, iniciou-se a segunda fase de análise dos casos de ágio no Carf. As turmas ordinárias e a 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, em composições significativamente alteradas, passam a revisar a jurisprudência anterior do conselho e os critérios de validação das operações aptas a possibilitar a dedutibilidade do ágio.

Mais especificamente, as turmas passaram a adotar conceitos importados do estrangeiro, onde regras antielisão estão estabelecidas, como “substância econômica” ou “propósito negocial”.[3]

Essa fase também foi marcada pela invocação de requisitos estranhos à legislação de regência de ágio (Lei 9.532/97 e Lei 12.973/14) – “transferência de ágio”, “real adquirente”, “sacrifício econômico”, entre outros – como substituto de onerosidade. Como resultado, nessa segunda fase, os casos julgados pela 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, com duas exceções,[4] tiveram recusada a dedutibilidade do ágio da base de cálculo do IRPJ e da CSLL.

Em relação à qualificação da multa de ofício, a 1ª Turma da Câmara Superior passou a imputar a penalidade qualificada em 150% à identificação de ilícitos civis – como abuso de direito e simulação, fraude à lei ou simplesmente à presença de ”artificialismo”. Nessa segunda fase, foi pouco valorizada a estrita inclusão dos fatos aos conceitos de sonegação, fraude ou conluio, que autorizam a aplicação da penalidade agravada nos termos do art. 44, I, c/c §1º, da Lei 9.430/96 e da Lei 4.502/64.[5]

A terceira fase se iniciou nos primeiros meses do ano de 2020, marcada pela suspensão das sessões presenciais em decorrência da pandemia e pela extinção do voto de qualidade promovida pela Lei 13.988/20.

Após um momento inicial de paralisação dos julgamentos, o Carf retomou as sessões de forma virtual. Estabeleceu-se uma limitação em relação ao valor de alçada de processos que poderiam ser incluídos em pauta. Essa circunstância limitou o exame de casos de ágio por evolverem normalmente valores altos.

Com o aumento do valor de alçada e a inclusão de mais processos em pauta, começaram os primeiros julgamentos sobre o tema, já com o voto de qualidade extinto. Esses precedentes, julgados a partir do segundo semestre 2021, são marcados por uma análise mais detida do caso em concreto e por uma revisão dos critérios que vinham norteando a segunda fase.

As operações envolvendo o chamado “ágio interno” continuam sendo invalidadas pela 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, mesmo diante do voto de minerva a favor do contribuinte.[6]

Esse é um ponto de interseção entre as três fases, pois as aquisições e reorganizações societárias sem presença de partes independentes nunca foram aceitas pela jurisprudência do Carf.

A turma também julgou recentemente, em abril de 2022,[7] um caso envolvendo a amortização de ágio com utilização de “empresa veículo”. Apesar do resultado favorável ao contribuinte naquela oportunidade, entendemos que a questão precisa ser mais debatida para a consolidação de uma tendência na jurisprudência.

A condução da Câmara Superior de Recursos Fiscais, no entanto, indica o fim da fase dois e o início de uma fase em que os conceitos jurídicos já estabelecidos em lei estão norteando a subsunção dos fatos em análise.

No que se refere à qualificação da multa de ofício, os precedentes identificados mostram uma clara mudança de posição da turma, que se desapega dos institutos previstos na lei civil para imputar a majoração e, consequentemente, uma maior subsunção da análise às condutas previstas na Lei 4.502/64.

Em um caso sobre o tema[8], julgado em setembro de 2021, a 1ª Turma da Câmara Superior faz uma análise detalhada dos critérios de elisão lícita e ilícita, assim como da evasão, para fins de aplicação da multa qualificada.

Pela análise desse e dos demais precedentes, a expectativa é que a jurisprudência se consolide nesse sentido. Nos demais temas correlatos, a supressão do voto de qualidade tem orientado um desdobramento favorável ao contribuinte nos processos oriundos de autos de infração.[9]

Apesar desse levantamento, em maior parte, favorável, o atual cenário do Carf é de incerteza. A suspensão, desde janeiro, das sessões de julgamento pela adesão de conselheiros representantes da Fazenda Nacional à greve da categoria, alinhada com a mudança da presidência do órgão e pela indecisão quanto à retomada das sessões presenciais, gera nos contribuintes dúvidas quanto aos desdobramentos dos julgamentos.

A primeira sessão presencial da 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais após a pandemia ocorrerá em julho. Em uma visão otimista, espera-se que no segundo semestre as sessões presenciais sejam efetivamente retomadas, possibilitando o retorno de julgamento das questões de ágio para a consolidação da jurisprudência administrativa sobre o tema.

 


[1] Prevista nas Leis 9.532/97 e 12.973/14.

[2] Após a edição da Medida Provisória 449, de 3 de dezembro de 2008, convertida na Lei 11.941/2009.

[3] Houve tentativa de introduzir no país regras antielisivas que incorporassem esses conceitos na MP66/02, que foi rejeitada pelo Congresso Nacional.

[4] Acórdão 9101-003.610, de 05/06/2018, Acórdão 9101-003.208, de 08/11/2017.

[5] Art. 44. Nos casos de lançamento de ofício, serão aplicadas as seguintes multas:

I - de 75% (setenta e cinco por cento) sobre a totalidade ou diferença de imposto ou contribuição nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, de falta de declaração e nos de declaração inexata;

  • 1º O percentual de multa de que trata o inciso I do caput deste artigo será duplicado nos casos previstos nos arts. 71, 72 e 73 da Lei 4.502, de 30 de novembro de 1964, independentemente de outras penalidades administrativas ou criminais cabíveis.

[6] A exemplo do Acórdão 9101-005.778, julgado em 9 de setembro de 2021.

[7] Acórdão 9101-006.049, de 04/04/2022.

[8] Acórdão 9101-005.761, de 26/10/2021.

[9] Segundo a Portaria ME 260/20.