O art. 28 da Lei nº 13.988/20, fruto da conversão da Medida Provisória nº 899/19 em lei, pôs fim ao voto de qualidade nas decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e significou um alívio para os contribuintes que, não raras vezes, viram créditos tributários serem mantidos pelo voto duplo conferido ao conselheiro representante da Fazenda.
A mudança ocorre em um contexto no qual as decisões do Carf passaram a priorizar fortemente a arrecadação e no qual julgamentos envolvendo legislações complexas, cujas interpretações sofreram mudança de entendimento por parte das autoridades fazendárias ao longo dos anos (e.g., casos de preços de transferência e ágio), passaram a ser decididos por voto de qualidade a favor do fisco, despertando na sociedade um sentimento de injustiça e insegurança jurídica.
Alvo de questionamento de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs)[1] propostas perante o STF e de ACP[2] ajuizada na Justiça Federal, o art. 28 tem tido sua legalidade colocada em xeque dos pontos de vista formal e material.[3]
Validade da norma colocada em xeque
A alegação mais utilizada nos questionamentos do art. 28 é de que a alteração no voto de qualidade teria sido feita por “jabuti” – o “contrabando legislativo” rechaçado pelo STF nos autos da ADI nº 5.127, julgada em 2015.
Em linhas gerais, questiona-se a pertinência temática do dispositivo inserido no PLV 02/2020, por meio da Emenda Aglutinativa nº 01, que visava a aglutinar os textos das emendas 9 e 162 ao referido PLV. Segundo a lógica adotada, a MP 899 versaria sobre negociação extrajudicial de créditos existentes e constituídos, enquanto o art. 28, ao tratar de regra de desempate em julgamento administrativo, disciplinaria o procedimento de determinação e exigência do crédito tributário.
Além de a ADI nº 5.127 tratar de contexto fático-normativo completamente distinto, a verdade é que a interpretação pretendida pelos autores das ADIs e da ACP retira do Poder Legislativo a faculdade constitucional de participação efetiva no processo de conversão de medida provisória em lei.
Longe de permitir que os órgãos legislativos se utilizem do processo para aprovar temas completamente dissociados da matéria eleita como relevante e urgente pelo Poder Executivo, o engessamento da atividade legislativa a ponto de impedir o aprimoramento das medidas afronta o texto constitucional.
Em verdade, a nova norma se revela um dos maiores instrumentos de justiça tributária já introduzidos no sistema jurídico. Como se sabe, as legislações fiscais atuais decorrem de extensas regulamentações, inúmeras vezes alteradas, bastante complexas e impregnadas de imprecisões técnicas, ambiguidades e lacunas.
O custo disso para a sociedade (Estado e contribuintes) é imenso. Excesso de litigiosidade, multas altíssimas (75% e 150%), custos de garantia, aumento do aparato estatal (número de procuradores, agentes fiscais, conselheiros etc.), enorme insegurança para os investidores e empresas, aumento dos custos das empresas (infraestrutura, pessoal, advogados etc.), sucumbência (Estado e contribuinte), entre outros.
No caso concreto, a pertinência temática é altíssima. A transcrição de parte da exposição de motivos da MP 899 não deixa qualquer dúvida e, em verdade, parece ter sido escrita sob encomenda para justificar a extinção do voto de qualidade: “6. (...) é instrumento de solução ou resolução, por meio adequado, de litígios tributários, trazendo consigo, muito além do viés arrecadatório, extremamente importante em cenário de crise fiscal, mas de redução de custos e correto tratamento dos contribuintes, sejam aqueles que já não possuem capacidade de pagamento, sejam aqueles que foram autuados, não raro, pela complexidade da legislação que permitia interpretação razoável em sentido contrário àquele reputado como adequado pelo fisco.”
A norma que extingue o voto de qualidade, portanto, soma-se ao conjunto de dispositivos que trata da transação tributária, para atingir um fim em comum.
Superada a primeira alegação, ainda são suscitados dois argumentos adicionais para sustentar a ilegalidade do art. 28.
Um deles diz respeito à suposta invasão de iniciativa privativa da Presidência da República. As ações ajuizadas sustentam que a disciplina da organização e do funcionamento dos órgãos da administração é reservada à iniciativa do presidente e que, portanto, a alteração do voto de qualidade deveria ter sido objeto de projeto de lei ou decreto de sua titularidade.
Ocorre que o art. 28 não interfere na estrutura do Carf. A norma editada diz respeito à proclamação de resultado em caso de empate no processo administrativo, exprimindo uma hipótese de extinção do crédito tributário em casos de quórum de empate. É, portanto, matéria de ordem tributária, que influencia na constituição definitiva do crédito tributário.
O último argumento, que, a nosso ver, não merece aprofundamento, é fundamentado na lógica de que a edição de normas gerais sobre lançamento é reservada à lei complementar e que, nesses termos, o Código Tributário Nacional (CTN) é o responsável pela regulamentação do tema. Pelas diretrizes do CTN, o lançamento seria competência privativa da autoridade fiscal.
Esse ponto, abordado na ACP, nos parece uma construção hermenêutica que passa ao largo dos textos legais. Basta notar que o art. 28 em nada afetou a atividade de lançamento dos agentes fiscais.
Aplicação da norma aos casos em andamento
Cabe então analisar quais são os efeitos da extinção do voto de qualidade para os processos em curso na esfera administrativa e judicial. Há quem entenda que a norma teria natureza exclusivamente processual e, como tal, apenas se aplicaria de forma prospectiva.
O art. 28 determina que deixem de ser definidos como infração os fatos indicados no lançamento em caso de empate no quórum de votação. É de se dizer que, na constatação de empate no julgamento, assume-se não ter havido fato típico apto a ensejar a cobrança tributária.
Esse é o entendimento que melhor se coaduna com o sistema tributário. Isso porque, de acordo com a dinâmica adotada antes, a dúvida sobre a manutenção do lançamento sempre era transformada na certeza do voto dúplice de um conselheiro representante da Fazenda Nacional, em flagrante violação aos princípios do devido processo legal administrativo, da isonomia, da estrita legalidade, da tipicidade tributária e, em especial, ao disposto no artigo 112, II, do CTN, segundo o qual deve se interpretar a lei tributária da maneira mais favorável ao acusado.
Daí extrai-se, em essência, in dubio pro contribuinte: se há dúvida quanto às circunstâncias fáticas que justificam a aplicação da legislação, deve prevalecer a interpretação mais favorável ao contribuinte.
O art. 28 apenas positivou uma orientação que já era irradiada pelos sistemas jurídico e jurídico tributário com o intuito de privilegiar a ideia de que a interpretação dúbia seja decidida a favor do contribuinte e reforçar o valor da tipicidade fechada (vide art. 112 do CTN mencionado acima e arts. 5, II, e 150, I, da Constituição, que tratam do Princípio da Legalidade no plano geral do Direito e do Princípio da Tipicidade Fechada no plano do Direito Tributário, respectivamente).
De certa forma, trata-se de um instrumento de resgate do conceito de tributo insculpido no art. 3º do CTN, qual seja, obrigação instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. Mais do que a simples leitura desse dispositivo sugere, o importante é observar que, para ser tributo, é preciso ter certeza da sua instituição e cobrança, duas qualidades que faltam nos casos decididos por voto de qualidade.
O art. 28 também é harmônico com o comando do art. 204 do CTN, que prescreve uma presunção de certeza e liquidez à dívida inscrita. O lançamento que, em processo de revisão administrativo, tem o mesmo número de julgadores opinando pela sua legitimidade e ilegitimidade não preserva esses atributos de certeza, liquidez e exigibilidade.
Pois bem. O art. 28 é uma regra híbrida, com característica predominante de direito material. Vai muito além de uma simples regra atinente ao rito do processo administrativo. Determina que a validade do crédito tributário somente exista quando exista razoável certeza da subsunção dos fatos à regra matriz de incidência, trazendo para o plano legislativo ordinário, verdadeiramente, uma hipótese de extinção do crédito tributário, dentro da moldura do artigo 156, IX e par. único, do CTN.
Nesse diapasão, o art. 106, II, “a” do CTN diz expressamente que a lei se aplica ao ato ou fato pretérito, desde que não definitivamente julgado, quando deixe de defini-lo como infração. Nos termos do art. 5º, XXXVI da CF e do art. 502 do CPC somente a decisão judicial final e inapelável tem a força de ser definitiva. Dessa forma, a aplicação do art. 28, sob o manto do art. 106, alcança todos os processos já julgados na esfera administrativa, bem como aqueles em andamento que já tiveram decisão de 2ª instância favorável ao fisco com base em deliberação empatada.
Por trazer novas regras para a relação jurídica entre contribuinte e União, isto é, um direito superveniente, o art. 28 deve ser aplicado aos processos em andamento, independentemente de sua fase processual. De forma geral, observado o caso concreto, o pedido de revisão na esfera judicial deve constar da inicial ou fazer parte de petição inominada, trazendo ao processo a notícia da norma superveniente.
Na esfera administrativa, o pedido de revisão de processos em andamento deve ser feito por meio de embargos, recurso ou petição inominada – esta última na hipótese de o recurso já ter sido protocolado. Acatado o pedido de revisão, a conclusão da parte dispositiva da decisão administrativa deve ser alterada para refletir o comando do art. 28. Na sequência, os prazos de embargos e recurso devem ser abertos à Procuradoria da Fazenda Nacional. Não se trata, portanto, de realizar um novo julgamento, tendo em vista a mais completa ausência de previsão normativa nesse sentido.[4]
Nessa linha, por não se tratar de norma de natureza exclusivamente processual e por conferir elementos que interferem na própria relação tributária entre contribuinte e fisco, estabelecendo hipótese de extinção do crédito tributário, entendemos que o dispositivo pode alcançar todos os casos nos quais a procedência do crédito tributário ainda é objeto de discussão, ou seja, que não têm decisão judicial transitada em julgado.
Ainda não se sabe como as turmas do Carf agirão diante dessa alteração legislativa, mas, para nós, uma coisa é certa: ainda que cercado de incerteza, o fim de voto de qualidade traz uma percepção de aprimoramento da justiça fiscal. Permaneceremos na expectativa de que os conselheiros adotem a interpretação mais adequada do tema e privilegiem a vontade do legislador.
[1] (i) ADI nº 6399, ajuizada pelo procurador-geral da República, Augusto Aras; (ii) ADI nº 6.403, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB); e (iii) ADI nº 6.415, ajuizada pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip).
[2] Ação Civil Pública 1023961-69.2020.4.01.3400, ajuizada pelo Instituto de Defesa em Processo Administrativo (Indepad).
[3] A pedido do STF, no âmbito da ADI nº6399, proposta pela PGR, a Câmara, o Senado, a Presidência e a AGU já se manifestaram pela sua legalidade.
[4] Discordamos, portanto, da orientação adotada na recente decisão emitida na Ação Ordinária nº 5094299-45.2019.4.02.5101/RJ, de 29 de maio de 2020.