Os departamentos jurídicos das grandes empresas estão passando por uma dupla transformação. A primeira, de postura, consiste em deixar de ser apenas um centro de gastos e um limitador de contratos para se tornar um setor estratégico e parceiro dos outros departamentos para viabilizar negócios. A segunda, tecnológica, em grande parte viabilizada pela primeira, manifesta-se pela automatização de serviços antes feitos manualmente, pela gestão baseada em dados e não apenas em experiência, pela atuação jurisdicional lastreada em evidências empíricas e não mais pelo vale-tudo-doutrinário que há tanto tempo se vê.

Já são diversos os cases de repaginação de departamentos jurídicos, de surgimento e ampliação de empresas big data ligadas ao Direito, as legal start ups,  e do uso, pelo mercado jurídico, de ferramentas de business intelligence e inteligência artificial de gigantes da tecnologia, como IBM, Google e Microsoft. Conhecer esses cases é ter a oportunidade de mergulhar no, cada vez mais presente, futuro da advocacia.

O tema chegou também aos grandes escritórios, que têm o desafio de se atualizar para continuar relevantes e necessários às empresas. Na última reunião do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), em abril, o presidente da entidade, Carlos José Santos da Silva, mais conhecido como Cajé, contou que o tema do anuário da instituição em 2017 é “Inteligência artificial na advocacia – Oportunidades e desafios”. Até o final do ano, cada comitê do Cesa – societário, tributário, ética…– elaborará um artigo sobre o tema, para compor uma publicação panorâmica a ser lançada em dezembro.

Na referida reunião, o advogado Alexandre Atheniense relatou que, dos 100 milhões processos ativos hoje no Judiciário brasileiro, 15% são digitais. Nos próximos anos, segundo ele, esse porcentual vai saltar para 40%. “Se o jurista se recusar a aceitar o computador, que formula um novo modo de pensar, o mundo, que certamente não dispensará a máquina, dispensará o jurista. Será o fim do Estado de Direito e a democracia se transformará facilmente em tecnocracia”, disse o autor italiano Renato Borruso, em seu livro Computer e Diritto, publicado em 1989, conforme citação de Atheniense.

A rápida transição da profissão para o universo digital causa apreensão na categoria em relação ao mercado de trabalho, já tão saturado e cujos profissionais se formam a partir de grades curriculares, na maioria dos casos, desatualizadas em gerações. “Precisamos criar talentos para lidar com a informação desapegada do papel. Isso também vai exigir uma mudança no modelo de negócio da advocacia”, ressaltou Atheniense.

O advogado Alexandre Zavaglia, coordenador do IDP em São Paulo e criador de um curso de especialização em big data voltado para o universo jurídico, ponderou que a tecnologia afetará postos de trabalho de profissionais que atuam em tarefas repetitivas, mas destacou que diversas outras áreas de autuação surgirão para os advogados. “Além disso, há um componente da estratégia profissional que nunca poderá ser substituído por robôs”, afirmou.

Entre as novas áreas de atuação jurisdicional, ele destacou duas: direito aplicado às novas relações surgidas a partir da tecnologia (consumidor, penal, trabalhista, civil e responsabilidade civil) e direitos fundamentais (privacidade, imagem e informação). Entre as novas frentes de trabalho, Zavaglia citou automação e inteligência artificial, saneamento e certificação de base de dados. Outros serviços possíveis estão no campo da jurimetria, gestão de riscos e predição de resultados.

“A ciência de dados é um campo vasto para os advogados porque são os profissionais da área que sabem fazer as perguntas – os robôs só respondem. O profissional precisa mudar”, avaliou o professor. O best seller israelense Yuval Noah Harari, autor de Sapiens e Homo Deus, disse em palestra recente que não se sustenta mais o modelo de educação em que o ser humano estuda vinte e poucos anos e fica apto para o mercado de trabalho. Os profissionais que não se reinventarem e adquirirem novas habilidades ao longo da vida terão pouco espaço.

A relação do cliente individual com o advogado também tende a mudar. Com a disseminação de análises sobre as jurisprudências consolidadas e o avanço de sites que oferecem petições prontas aos interessados, o ato de litigar também pode ser reconfigurado. No curto prazo, os critérios de escolha do advogado também podem sofrer alteração, quando a indicação pessoal der espaço, por exemplo, à avaliação das métricas de sucesso de cada profissional.

A transição já começou

Um grande banco brasileiro resolveu investir pesado em tecnologia para automatizar seus fluxos internos e planejar estrategicamente o encaminhamento de centenas de milhares de processos em estoque. Atualmente, robôs varrem o site dos tribunais procurando novas ações e o andamento dos casos já em tramitação. No caso de um processo novo, uma vez identificado movimento, os dados são automaticamente transpostos para campos específicos no software de gestão de processos do departamento. Um outro software de inteligência artificial, que trabalha com reconhecimento de linguagem, lê o documento para identificar o tipo de ação, o pedido e os valores. Em seguida, faz um cruzamento com as estatísticas daquele tipo de ação, naquela cidade, naquele valor e aponta se faz mais sentido oferecer um acordo ou contestar. Um advogado avalia a sugestão do computador e, se concorda, por exemplo, em contestar, o sistema já oferece uma peça pronta para revisão, que é encaminhada para o correspondente.

Com o peticionamento eletrônico crescente, em pouco tempo as empresas poderão atuar até a fase da constestação com robôs, na maior parte dos casos. Os escritórios correspondentes poderão ser substituídos por audiencistas, que chegarão ao fórum com um briefing gerado automaticamente pelo sistema. No futuro, quem sabe, audiencistas internos de cada companhia se revezarão em subsequentes audiências online sem levantar de suas cadeiras.

Empresas e escritórios já têm à sua disposição serviços – ainda caros e de entrega demorada – para mapear a jurisprudência sobre um determinado assunto em todo o país, com uma granularidade que vai do tribunal estadual ou regional a uma vara específica de determinada comarca. Departamentos jurídicos usam tecnologia semelhante em seus próprios estoques para analisar quais bancas, contratadas por eles, têm as maiores taxas de vitória, por assunto ou região. No passado, uma empresa podia deixar os escritórios experimentarem livremente com teses diferentes em comarcas diversas para tratar de casos iguais e ver o que emplacava melhor. Atualmente, a prática não é mais tão recomendável, especialmente em contencioso de massa, pela força que o novo Código de Processo Civil atribuiu aos precedentes – que, aliás, devem ser monitorados.

O JOTA lança, com esta reportagem, um selo para divulgação de cases relacionados à transformação da atividade em decorrência do avanço tecnológico. Vamos contar histórias de departamentos jurídicos, escritórios, novas empresas, gigantes da tecnologia, novos produtos, áreas de trabalho e perfis profissionais – sempre com a tag inovação digital. Sugestões são bem-vindas (escreva para Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.) e serão avaliadas, jornalisticamente, pelos editores do JOTA.

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