Num contexto político e social em que muito se fala sobre as penalidades criminais e administrativas decorrentes da prática de atos contra a administração pública, pouco se fala sobre os impactos dessas condutas nas relações entre entes privados. Desde o início de 2014, quando a Operação Lava Jato foi deflagrada, aumentam a cada dia as notícias acerca de condutas criminosas, das tipificações mais variadas, praticadas por entes públicos e privados contra a administração pública e/ou contra a ordem econômica. A partir daí, as investigações conduzidas pela Polícia Federal, as acusações pelo Ministério Público e a atuação coercitiva do Poder Judiciário, em conjunto, devem caminhar em prol da proteção do interesse público.
Grandes empresas, com atuação relevante no mercado nacional e algumas vezes também no internacional, bem como executivos de empresas públicas e privadas, têm sido envolvidos em investigações criminais, e cada vez mais tentam se valer dos institutos do acordo de leniência e da colaboração premiada, na tentativa de obterem perdão judicial, de terem suas penas reduzidas, ou substituídas por outras mais brandas.
Ocorre que, além das consequências criminais e administrativas apuradas no âmbito do direito público, os acordos de leniência e delações premiadas também produzem resultados diretos nas relações jurídicas privadas que estas empresas e executivos mantêm.
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que os benefícios decorrentes da adesão ao programa de leniência são restritos às esferas penal e administrativa nos termos da lei, não havendo extensão desses benefícios para as relações privadas.
Ainda que o acordo de leniência e a colaboração premiada não tragam benefícios às relações privadas, eles certamente trazem grandes impactos às relações civis e de trabalho, que decorrem da apuração e/ou comprovação dos delitos praticados.
O presente artigo visa tratar, especificamente, dos impactos que essas investigações sobre crimes contra a administração pública e ordem econômica são capazes de produzir sobre os contratos de trabalho dos investigados, especialmente quando estes se valem dos acordos de leniência e delações premiadas, institutos que estão nos holofotes da atualidade.
As empresas que estão na mira da Operação Lava Jato são apenas um exemplo, escolhido para ilustrar este artigo em razão da evidência e do destaque atribuídos ao assunto nos dias de hoje. A verdade, todavia, é que qualquer acordo de leniência, ou colaboração premiada, pressupõe a confissão acerca da prática de um ato ilícito, o que certamente afetará a relação de trabalho do autor, coautor ou partícipe do ato ilícito ou irregularidade objeto do acordo ou colaboração.
No âmbito das relações de trabalho, a situação é deveras delicada. Se a própria empresa empregadora (pessoa jurídica) é investigada como possível autora de um ato ilícito e celebra um acordo de leniência com a autoridade governamental competente para fiscalizá-lo, ela confessa a conduta irregular. Nesta situação, indaga-se: poderá (ou deverá) a empresa aplicar punições disciplinares e até mesmo demitir por justa causa os empregados (pessoas físicas) que estejam envolvidos na prática da irregularidade em questão? A conduta dos empregados se confunde com a conduta da própria empresa?
O artigo 3.º da Lei 12.846/2013, que trata da a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, dispõe que “a responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito”. Portanto, a punição da empresa e os efeitos de um acordo de leniência por ela proposto não exime a punição (criminal, administrativa, civil, trabalhista, etc.) dos empregados envolvidos no ato ilícito. A personalidade da empregadora não se confunde com a personalidade do empregado.
O que distingue a responsabilidade da empresa e a responsabilidade do empregado é a necessidade ou não de demonstração do elemento da culpa: a responsabilidade da pessoa jurídica é objetiva, ou seja, independe de culpa; já a responsabilidade da pessoa física é subjetiva e dependerá da comprovação da culpabilidade do indivíduo (parágrafos 1.º e 2.º do artigo 3.º da Lei 12.846/2013), além de ser apurada de forma proporcional à sua participação.
O artigo 16 da mesma lei trata especificamente da leniência, que pressupõe um acordo entre a pessoa jurídica (empregadora) e a autoridade estatal competente. Por meio deste acordo, a empresa confessa a prática do ilícito, visando a isenção das sanções administrativas e a redução do valor da multa (artigo 16, § 2º da citada Lei). Por sua vez, a autoridade competente concorda em flexibilizar as sanções na medida da lei, desde que a celebração do acordo de leniência resulte na identificação dos indivíduos envolvidos e na obtenção célere de informações sobre o ilícito (incisos I e II do mesmo artigo 16).
Portanto, apesar da lei não prever a celebração do acordo de leniência por pessoa física, uma das consequências lógicas da celebração de um acordo de leniência entre uma empresa e uma autoridade estatal será, inevitavelmente, a identificação dos seus trabalhadores (empregados, prestadores de serviços, diretores, administradores, etc.) que tenham tido envolvimento na prática do ato ilícito apurado. E uma vez que o proponente do acordo de leniência será apenas o empregador (pessoa jurídica), os empregados (pessoas físicas) não poderão se beneficiar da atenuação das penalidades.
Por outro lado, a Lei 12.850/2013 (que dispõe sobre investigação criminal e meios de obtenção da prova, etc.) prevê em seu art. 4.º a colaboração premiada – conhecida pelo famoso termo “delação premiada” – por pessoas físicas, prevendo uma série de benefícios para quem colaborar efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, observados os requisitos ali previstos. O inverso, portanto, poderá ocorrer: o empregado poderá demonstrar sua intenção de colaborar com a investigação, comprometendo a empresa empregadora.
Há, ainda, situações específicas em que se admite que os empregados adiram pessoalmente ao acordo de leniência proposto pela empresa, confessando a prática da conduta investigada em participação ou coautoria com a pessoa jurídica, visando se beneficiar das atenuantes das sanções que poderá sofrer. Nesse sentido, a Lei 12.529/2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, prevê em seu artigo 86 que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o CADE, poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas físicas e jurídicas envolvidas em infrações contra o livre mercado e a ordem econômica.
Um dos requisitos para que uma proposta de acordo de leniência seja aceita é que a empresa cesse completa e imediatamente a conduta investigada (artigo 16, § 1.º, II, da Lei 12.846/2013).
Ora, uma pessoa jurídica não poderá se comprometer a cessar completamente determinada conduta ilícita, a menos que imponha medidas internas que obriguem os seus empregados (pessoas físicas) a se absterem de praticá-la. Na maioria das vezes, a única maneira segura e eficaz de fazê-lo, ou de demonstrar à autoridade competente a adoção de medidas eficazes para coibir imediatamente a prática do ato ilícito, é afastar da empresa os empregados suspeitos de envolvimento.
Este afastamento pode ocorrer de duas formas: (i) interrupção do contrato de trabalho; ou (ii) rescisão do contrato de trabalho, por justa causa ou sem justa causa.
A decisão sobre a alternativa adequada variará conforme o caso.
Caso ainda não haja indícios ou provas suficientes do grau de envolvimento daqueles empregados na prática dos atos ilícitos investigados, a interrupção do contrato de trabalho poderá se mostrar a via mais adequada, aguardando-se o resultado das apurações internas e/ou a evolução das investigações até que elementos mais conclusivos sejam obtidos. Justamente em razão da impossibilidade de se imputar a conduta ilícita àquele determinado empregado em um primeiro momento, a interrupção do contrato de trabalho deverá ocorrer na forma de licença remunerada, garantindo-se ao empregado afastado a manutenção de seus direitos trabalhistas durante o período de afastamento.
Tão importante quanto manter os direitos trabalhistas será manter as investigações em absoluto sigilo e confidencialidade, não só em vista dos requisitos da legislação aplicável, mas também a fim de proteger a imagem do empregado afastado.
Encerradas as apurações, caso seja constatado o não envolvimento do empregado nas condutas investigadas, ele poderá retornar ao trabalho e ao exercício das suas atividades habituais, computando-se o tempo de interrupção do contrato de trabalho para todos os fins. Caso seja constatado o envolvimento do empregado, será aplicável medida disciplinar que poderá culminar na demissão por justa causa. A depender do caso, a demissão por justa causa será a postura mais coerente, quer seja para demonstrar a ausência de aquiescência da empresa com a prática do ilícito pelo seu empregado, quer seja em razão dos prejuízos causados ao empregador ou em razão da quebra de confiança.
Caso a empresa já tenha consolidado provas suficientes acerca dos fatos, do envolvimento e do grau de responsabilidade dos autores, coautores e partícipes do ato ilícito investigado, é importante a imediata aplicação de medidas disciplinares ou eventual demissão dos empregados envolvidos por justa causa, por improbidade e mau procedimento, com fundamento nas alíneas ‘a’ e ‘b’ do artigo 482 da CLT. No caso específico de violação das leis de concorrência (Lei 12.259/2011), há ainda a possibilidade de enquadramento do empregado na alínea ‘c’ do artigo 482 da CLT, que trata da negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço.
Em muitos casos, a demissão por justa causa não depende da conclusão das investigações pelas autoridades estatais competentes, tampouco da aceitação ou rejeição da proposta do acordo de leniência. Se o empregador tem certeza da autoria do ato ilícito de seu empregado, ou do seu grau de participação no referido ato, possuindo elementos hábeis a suportar tal convicção, ele não precisará aguardar o término das investigações e a possível condenação do seu empregado, para que seja efetivada a demissão por justa causa. Pelo contrário, o empregador deve rescindir o contrato de trabalho por justa causa tão logo tenha elementos suficientes e contundentes para demonstrar o envolvimento do empregado na prática de atos ilícitos. A imediatidade na aplicação de tais medidas disciplinares ou rescisão por justa causa é elemento essencial para a sua validade, sob pena de se configurar perdão tácito e até conivência da empresa com os atos ilícitos praticados pelo seu empregado.
Em que pese a existência do requisito imediatidade para validação da justa causa, é importante destacar que sua aplicação deve ser relativizada nos casos aqui debatidos. Em vista da complexidade e gravidade dos fatos que justificam os acordos de leniência e colaborações premiadas, é recomendável que exista apuração cuidadosa acerca não só do envolvimento dos indivíduos, mas também do grau de responsabilidade sobre os atos irregulares. Mais ainda, a natureza dos atos ilícitos em discussão, na maioria das vezes praticados por intermédio de mecanismos sofisticados para ocultação de evidências, justifica que apurações se arrastem por meses antes de sua conclusão.
De fato, não raro as empresas se utilizam de longos períodos de investigação e negociação dos acordos de leniência e colaborações premiadas, para a correta comprovação dos atos ilícitos, seus agentes e respectivas gradações da atuação.
Assim, nesses casos específicos, entende-se que o elemento imediatidade deve ser relativizado ou mesmo ampliado, afastando-se do senso comum, principalmente para se evitar a aplicação precipitada da justa causa. O empregador deve estar munido de evidências acerca do envolvimento do seu empregado na prática da conduta irregular e reprovável a ser classificada como falta grave nos termos do artigo 482 da CLT. Enquanto houver dúvidas sobre o envolvimento e/ou responsabilidade do empregado no ato ilícito, a justa causa poderá ser rejeitada pela Justiça do Trabalho.
É comum que as empresas se depararem com a dúvida acerca da necessidade ou não da aplicação de medidas disciplinares (como advertências e suspensões) anteriormente à demissão por justa causa, em razão do princípio da gradação das penas. Dependendo do nível da gravidade da conduta, relativiza-se o princípio da gradação das penas, em prol dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Na situação ora analisada, em que o empregado confessa a prática de ato ilícito mediante adesão a um acordo de leniência ou apresentação de colaboração premiada a autoridades governamentais, pressupõe-se a gravidade da conduta. Admite-se, dessa forma, a imediata demissão por justa causa, independentemente de prévia aplicação de advertência ou suspensão, em razão da quebra da relação de confiança intuito personaeentre empregado e empregador, necessária para a manutenção do vínculo de emprego.
Como se vê, o acordo de leniência ou a colaboração premiada estão intimamente ligados à possibilidade de uma demissão por justa causa. Firmado o acordo de leniência ou aceita a colaboração premiada, as partes envolvidas serão beneficiadas com a isenção ou diminuição das penas nos âmbitos criminal e administrativo. Todavia, assim como o acordo de leniência não exime o proponente da sua responsabilidade civil, tampouco o eximirá das suas responsabilidades na esfera trabalhista.
Caberá ao empregador obter a assessoria jurídica apropriada para aplicar as medidas cabíveis contra o empregado que confessar o envolvimento em ato ilícito por meio desses instrumentos.
(Jota-BR – 16.12.2016)
(Notícia na íntegra)