Por André Rosilho e Larissa Gebrim O recente escândalo envolvendo a Petrobras aponta para a suposta existência de fraudes em licitações, despertando a atenção para nuance do regime jurídico a ela aplicável: a empresa, em função da Lei do Petróleo, de 1997, está autorizada a adquirir bens e serviços por meio de procedimento licitatório simplificado, a ser definido em decreto do presidente da República ­ o procedimento, atualmente, é regulamentado pelo decreto federal 2.745/98. Ou seja, ela não precisa se sujeitar ao regime geral de licitações (mais rígido e burocrático), aplicável à generalidade da administração e disciplinado pela conhecida lei 8.666/93. Dúvida: estaria o procedimento licitatório da Petrobras na origem dos supostos desvios? Teria sido ele o grande responsável por viabilizar o suposto esquema de corrupção? Eventual relação de causa e efeito, para que pudesse ser estabelecida, necessariamente dependeria da existência de provas concretas. Seria temerário, e até mesmo irresponsável, ligar uma coisa a outra exclusivamente a partir de ilações ou de opiniões desconectadas de provas. Surpreende, contudo, que, mesmo diante da ausência de indícios substanciais, o Tribunal de Contas da União (TCU), importante instituição de controle da administração, tenha, por meio do seu presidente, sugerido que a origem dos supostos malfeitos estaria nas regras do procedimento licitatório da Petrobras, chegando, inclusive, a pedir ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) que obrigasse a empresa a observar a lei 8.666/93 nas suas futuras contratações. O pedido tem um contexto: TCU e STF há anos divergem sobre a possibilidade de a Petrobras se valer de regras próprias de licitação para contratar. O primeiro, a tem rechaçado; o segundo, evita tomar decisão definitiva sobre o tema, mas, em ações pontuais e em liminares, tem revertido decisões do TCU e autorizado a Petrobras a utilizar o decreto 2.745/98. Diversas ações ainda dependem de julgamento e a "disputa" permanece sem desfecho. O TCU, ao agir dessa maneira, parece dizer: "Eu bem que avisei!". Olhar cauteloso para sua jurisprudência revela, contudo, que a Corte de Contas, mesmo nos casos em que rechaçou a possibilidade de a Petrobras se valer do decreto 2.745/98 para contratar, não apontou reais ilicitudes e abusos ­ tanto que o STF tem sucessivamente revertido suas decisões. O que se nota é que o TCU se limitou a dizer, de diferentes maneiras, que preferia um modelo específico de licitação (o da lei 8.666/93). Para o TCU, o procedimento licitatório da Petrobras seria juridicamente inadequado por disciplinar a licitação de modo diverso da lei 8.666/93 e por supostamente violar princípios jurídicos, abstratos e de conteúdo impossível de ser definido a priori. O que significaria violar o princípio da moralidade ou da impessoalidade? Difícil dizer. A Corte de Contas, ao insinuar nesse contexto que o decreto 2.745/98 seria a causa dos supostos malfeitos ­ mesmo não havendo prova concreta para respaldar essa desconfiança ­ e ao pedir ao STF que responda à crise determinando que a Petrobras se submeta à lei 8.666/93, parece se valer de uma "janela de oportunidade" para persuadir o Supremo a mudar de posição e a chancelar, em eventual julgamento de mérito das ações em que se questionou a juridicidade do decreto 2.745/98, o posicionamento que ela própria tem defendido. Ao STF cabe separar o joio do trigo e responder as seguintes indagações: eventual comprovação da existência de esquema de corrupção nas contratações públicas da Petrobras faria, por si só, com que o decreto 2.745/98 automaticamente fosse ilegal ou inconstitucional? E mais: supondo que a Petrobras pautasse suas contratações pela lei 8.666/93, teria o escândalo de corrupção sido evitado? Parece­nos que não. Independentemente das respostas e dos rumos das investigações, é preciso dizer que as regras da lei 8.666/93 ­ que se aplicariam à Petrobras caso a empresa não mais pudesse utilizar o decreto federal ­ não são mais probas nem mais eficazes para contratar ou para combater a corrupção. Não fazemos, aqui, qualquer tipo de defesa do procedimento licitatório da Petrobras ­ foge ao escopo do artigo avaliar sua qualidade. O que se quer ressaltar é que a lei 8.666/93 não consubstancia a única maneira juridicamente válida de traduzir para texto de lei o dever de licitar e que ela não é capaz de, por si só, evitar desvios, conluios e malversação de recursos públicos ­ aliás, a história prova exatamente o contrário. A jurisprudência do TCU tem de ser vista com cautela. Eventual sujeição da Petrobras ao regime geral de licitação seria, a nosso ver, um equívoco. Os regimes licitatórios simplificados são, em tese, instrumentos juridicamente legítimos que se propõem a levar a natureza empresarial das estatais a sério. Erradicá­los prejudicaria, e muito, a possibilidade de o Estado se valer do figurino empresarial para desempenhar relevantes atividades de interesse público ­ parece evidente que seria inadequado obrigar empresas estatais que competem no mercado a contratar da mesma maneira que repartições públicas. Não se pode, a pretexto de combater a corrupção, anular importante instrumento de gestão pública. Ademais, é importante lembrar que a própria Constituição explicitou a possibilidade de as estatais gozarem de regras próprias de licitação (art. 173, § 1º, III). Eventual decisão que fixasse, para elas, via única para contratar (lei 8.666/93) contrariaria a Constituição e impactaria não só a Petrobras, como outras empresas estatais autorizadas, por lei, a terem regimes licitatórios similares. André Rosilho é mestre em direito e desenvolvimento pela FGV Direito SP, professor da Sociedade Brasileira de Direito Público e autor do livro "Licitação no Brasil", Malheiros, 2013. Larissa Santiago Gebrim é graduanda em direito pela FGV Direito SP.Valor Econômico - 30.03.2015, p. A16