Em 22 de outubro de 2025, o Ministério da Saúde publicou a Portaria GM/MS nº 8.477/25, que institui o Componente da Assistência Farmacêutica em Oncologia (AF-ONCO), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), regulamenta seu financiamento, aquisição, distribuição e dispensação, bem como altera a Portaria de Consolidação nº 6/17 (normas sobre o financiamento e a transferência dos recursos federais para as ações e os serviços de saúde do SUS).
A iniciativa está prevista na Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer (PNPCC), instituída pela Lei nº 14.758/23 - e visa garantir a integralidade do tratamento medicamentoso oncológico, com base em protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas (PCDT) e outras normas técnico-assistenciais do Ministério da Saúde.
O acesso a terapias para tratamento de câncer é discutido desde 2020, quando o GT sobre Acesso à Terapia Sistêmica do Câncer, do Conselho Consultivo do Inca (Consinca) emitiu relatório propondo:
- a necessidade de o Ministério da Saúde buscar, ao máximo, fazer a compra centralizada, principalmente de produtos com concentração de mercado (e.g., patente, medicamento de alto custo), com a possibilidade de aquisição descentralizada, via Autorização de Procedimentos Ambulatoriais de Alto Custo (APAC).
- Cabe ressaltar que a Portaria GM/MS nº 8.477/25 manteve essa possibilidade, determinando que um novo modelo de APAC seja estabelecido exclusivamente para medicamentos oncológicos, por meio de ato normativo a ser publicado pela Secretaria de Atenção Especializada à Saúde; e
- a instituição de lista integralizada de medicamentos oncológicos dispensados no SUS, a partir dos tratamentos constantes nas Diretrizes Diagnósticas Terapêuticas (DDTs), quando existentes, devendo essa lista ser utilizada como base para definição das opções terapêuticas a serem incluídas no campo da APAC magnética correspondente.
Confira abaixo os principais pontos trazidos pela Portaria GM/MS nº 8.477/25.
Definição de medicamento oncológico e incorporação no Rename
A nova norma define como medicamentos oncológicos todos os fármacos com ação citotóxica, terapias-alvo, imunoterapias, hormonioterapias, terapias celulares e gênicas, estratégias teranósticas e outras tecnologias inovadoras com indicação oncológica.
Todos os medicamentos oncológicos, já incorporados ou que venham a ser incorporados ao SUS, deverão ser incluídos na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), mediante ato conjunto das Secretarias de Atenção Especializada à Saúde (SAES) e de Ciência, Tecnologia e Inovação, ambas do Ministério da Saúde (SECTICS).
Financiamento do AF-ONCO e modelos de aquisição
De acordo com a nova portaria, o AF-ONCO será financiado de forma integral pela União, com recursos do bloco de financiamento da Atenção Especializada à Saúde, por meio de repasses fundo a fundo aos entes federativos. A norma estabelece três modalidades distintas de aquisição de medicamentos oncológicos:
- Aquisição centralizada pelo Ministério da Saúde: medicamentos oncológicos adquiridos e fornecidos às Secretarias de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, desde que estes últimos tenham serviços habilitados de oncologia sob sua gestão, bem como aos hospitais sob gestão federal, como o Grupo Hospitalar Conceição (GHC) e o Inca;
- Elegível aos medicamentos que: (i) possuam detentor único de patente; (ii) apresentem alto impacto orçamentário; (iii) estejam incluídos em programas estratégicos (PDP, PDIL); (iv) sejam passíveis de Acordo de Risco Compartilhado (ACR); e (v) sejam utilizados no tratamento de neoplasias de alta complexidade ou alta incidência.
- Negociação nacional com participação dos entes federativos: medicamentos oncológicos em que o processo de compra é coordenado e gerido pelo Ministério da Saúde, com a participação dos demais entes federativos, incluindo-se, quando possível, os serviços habilitados, e a execução realizada diretamente pelas Secretarias de Saúde dos Estados e do Distrito Federal;
- Elegível aos medicamentos que: (i) apresentem demanda global elevada e pulverizada regionalmente; (ii) tenham demanda individual baixa nos CACONs/UNACONs; (iii) sejam utilizados em linhas terapêuticas posteriores; e (iv) possuam histórico de desabastecimento regional.
- Aquisição descentralizada pelos serviços habilitados em oncologia: medicamentos oncológicos em que a aquisição e a execução são de responsabilidade dos serviços contratados pelas Secretarias de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, desde que estes últimos tenham serviços habilitados de oncologia sob sua gestão.
- Aplicável aos medicamentos que não se enquadrem nos critérios das modalidades anteriores ou que sejam definidos por ato normativo conjunto e pactuação na Comissão Intergestores Tripartite (CIT).
Para medicamentos de altíssimo custo, definidos como aqueles cujo custo anual por paciente seja igual ou superior a 210 salários-mínimos — conforme estabelecido no acordo homologado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Tema 1234 — será publicada uma lista específica, pelo Ministério da Saúde, com distribuição territorial centralizada por meio de centrais de diluição únicas. A autorização de APACs terá prazos específicos: 90 dias para medicamentos de altíssimo custo e 180 dias para os demais medicamentos de aquisição centralizada.
A Portaria GM/MS nº 8.477/25 ainda traz expressamente a possibilidade de aquisição por meio de organismos internacionais em saúde ou outros parceiros, buscando o desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) sempre que possível, e de consórcios regionais.
Responsabilidades dos entes federativos e dos serviços habilitados
A gestão compartilhada para o AF-ONCO entre os diferentes níveis de governo e os serviços habilitados no SUS se dará da seguinte forma:
- União: responsável pela elaboração e publicação dos protocolos e diretrizes clínico-assistenciais, financiamento integral do AF-ONCO, coordenação das aquisições centralizadas, definição de mecanismos de autorização prévia da APAC, monitoramento, supervisão técnica e desenvolvimento de sistemas de controle e avaliação, além de promover ações para diminuir a judicialização e apoiar a organização das centrais de diluição.
- Estados e Distrito Federal: responsáveis pela contratualização dos serviços habilitados, execução das aquisições descentralizadas e participação nas negociações nacionais, operacionalização das Atas de Registro de Preço, logística de distribuição dos medicamentos, envio obrigatório dos dados de estoques, saídas, prescrição e dispensação para o Banco Nacional de Ações da Assistência Farmacêutica (BNAFAR) e para a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), planejamento conjunto da demanda de medicamentos, e cooperação para inclusão de pacientes judicializados na rede de fornecimento.
- Municípios: quando houver serviços habilitados em oncologia sob sua gestão, são responsáveis pela contratualização desses serviços, pela execução das atividades de dispensação e administração dos medicamentos, bem como pelo envio das informações pertinentes para monitoramento da política pública. Além disso, devem cooperar com os demais entes na inclusão de pacientes judicializados nos fluxos assistenciais definidos.
- UNACON (Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia) e CACON (Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia): responsáveis pela dispensação e administração dos medicamentos, execução dos protocolos clínicos, solicitação e registro da APAC, apresentação da produção dos procedimentos nos sistemas de informação do SUS, envio mensal da demanda e consumo de medicamentos, abastecimento obrigatório da BNAFAR, e disponibilização de documentos para monitoramento e fiscalização.
As UNACON atendem regiões com estrutura completa de tratamento oncológico, enquanto os CACON são centros de referência com maior capacidade técnica e estrutura especializada.
Critérios de priorização e incorporação de tecnologias
Um dos pontos centrais da portaria é a definição dos critérios técnicos e científicos para priorização de tecnologias oncológicas. A análise será conduzida conjuntamente pela Secretaria de Atenção Especializada à Saúde (SAES) e pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (SECTICS), observando os seguintes critérios:
- Gravidade da condição clínica e carga da doença;
- Lacunas terapêuticas;
- Potencial de ganho de sobrevida ou qualidade de vida;
- Robustez das evidências científicas;
- Custo-efetividade e impacto orçamentário;
- Viabilidade logística e produtiva;
- Capacidade de monitoramento e regulação; e
- Judicialização.
Além disso, a priorização observará o alinhamento com estratégias de fortalecimento do CEIS, com estímulo à produção nacional e à sustentabilidade do financiamento público.
As propostas de priorização poderão ser apresentadas por gestores públicos, sociedades científicas, entidades de pacientes e órgãos internos do Ministério da Saúde, sendo submetidas à avaliação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec).
Importa destacar que, nos termos da Lei nº 12.401/2011 e do Decreto nº 7.646/2011, qualquer pessoa física ou jurídica pode formalizar a submissão de tecnologias à Conitec, independentemente da etapa de priorização prevista na nova portaria.
Ressarcimento interfederativo e integração com o Tema 1234 do STF
A publicação da Portaria GM/MS nº 8.477/25 está diretamente vinculada ao cumprimento das diretrizes estabelecidas no Tema de Repercussão Geral nº 1234, julgado pelo STF, que trata, entre outros temas, da responsabilidade pelo fornecimento judicial de medicamentos não incorporados no SUS e ao ressarcimento entre os entes federativos.
Em 2024, o ministro Gilmar Mendes já havia determinado o cumprimento do acordo pactuado entre os entes federativos, fixando prazo para sua implementação. Foram atribuídas ao Ministério da Saúde as seguintes obrigações:
- Repartição dos custos de medicamentos não incorporados entre os entes federativos.
- Quando o custo anual unitário do medicamento ficar entre 7 e 210 salários-mínimos (aproximadamente R$ 10 mil e R$ 295 mil), a União deverá ressarcir 65% das despesas decorrentes de condenações dos estados e dos municípios em até 90 dias.
- No caso de ações ajuizadas até 10 de junho de 2024 que tratem de medicamentos oncológicos não incorporados, o percentual de ressarcimento pela União será de 80%, se o custo for superior a sete salários-mínimos (aproximadamente R$ 10 mil), a ser implementado mediante ato do Ministério da Saúde, previamente pactuado em instância tripartite, no prazo de até 90 dias.
- Criação de plataforma responsável por unificar as informações sobre demandas administrativas e judiciais envolvendo acesso a medicamentos — incluindo, mas não se limitando, à informação de qual é o ente responsável pelo fornecimento e custeio do medicamento.
Diante do descumprimento parcial das medidas acordadas (e.g., falta de regulamentação efetiva dos critérios de ressarcimento e aquisição, ausência de implementação da plataforma nacional), o ministro proferiu nova decisão em 2025, reforçando a obrigatoriedade de observância das teses fixadas e determinando a adoção de providências concretas, inclusive pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Entre os principais pontos definidos na decisão judicial, destacam-se:
- A União deverá ressarcir 80% dos valores despendidos pelos entes federativos em decorrência de decisões judiciais que determinem o fornecimento de medicamentos oncológicos.
- Esse percentual aplica-se às ações ajuizadas a partir de 10 de junho de 2024, e será mantido por 12 meses contados da publicação da portaria, sendo posteriormente reavaliado pela CIT.
- O ressarcimento abrange tanto medicamentos já incorporados quanto não incorporados ao SUS, desde que relacionados ao tratamento oncológico.
- Concessão de prazo adicional de mais 60 dias para que a CIT pactuasse o ressarcimento de medicamentos oncológicos — tendo em vista que o prazo inicial não havia sido cumprido pelo Ministério da Saúde.
Pontos pendentes de regulamentação
De acordo com a nova portaria, há aspectos que ainda dependem de regulamentação específica, incluindo:
- Criação de um novo modelo de APAC exclusivo para medicamentos oncológicos. O ato normativo correspondente deverá ser publicado pela Secretaria de Atenção Especializada à Saúde em até 60 dias após a publicação da Portaria GM/MS nº 8.477/25 (22 de dezembro de 2025).
- Critérios mínimos e procedimentos para operacionalização de autorização prévia da APAC por médico auditor do SUS, observando os seguintes prazos:
- Para medicamentos de altíssimo custo: prazo de 90 dias contados da publicação da Portaria GM/MS nº 8.477/25 (22 de janeiro de 2026).
- Para os demais medicamentos de aquisição centralizada: prazo de 180 dias contados da publicação da Portaria GM/MS nº 8.477/25 (22 de abril de 2026).
- Os estabelecimentos que optarem pela aquisição direta dos medicamentos deverão seguir regras específicas de registro e prestação de contas nos sistemas do SUS, a serem definidas por ato normativo conjunto entre a Secretaria de Atenção Especializada à Saúde e a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, que deve ser publicado em até 60 dias contados da data de publicação da Portaria GM/MS nº 8.477/25 (22 de dezembro de 2025).
- Relação oficial dos serviços que se enquadram nas modalidades de aquisição previstas (centralizada, negociação nacional e descentralizada), com revisão periódica conforme habilitações e conformação da rede.
A prática de Life Sciences e Saúde pode fornecer mais informações sobre o tema.
