A pejotização – contratação de pessoas físicas por meio de pessoas jurídicas (PJ) que elas próprias integram – passou a ocupar lugar central nas discussões tributárias. Ao mesmo tempo em que responde às transformações do mercado de trabalho, o modelo desperta dúvidas sobre a incidência de contribuições previdenciárias, Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) e demais encargos, especialmente quando o fisco entende que há simulação para mascarar vínculo empregatício. O objetivo deste artigo é mapear, sob a ótica administrativa e judicial, os principais aspectos do tema.

Cabe lembrar que, em caso de descaracterização da pessoa jurídica, a Receita Federal exige contribuições previdenciárias e Imposto de Renda de acordo com o regime tributário aplicável para pagamento a pessoas físicas, o que, em geral, é mais oneroso.

No âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), o tema da pejotização tem sido amplamente debatido. Um levantamento recente, baseado em 60 acórdãos proferidos entre 2017 e 2024, revela um cenário de decisões divididas: 27 desfavoráveis ao contribuinte, 9 parcialmente favoráveis e 24 favoráveis.

Isso significa que 45% dos julgados resultaram em êxito pleno para o fisco, enquanto 55% apresentaram resultados total ou parcialmente positivos para o contribuinte. Examinando detalhadamente os acórdãos, observa-se que a posição atualmente majoritária no Carf é de que a desconsideração da personalidade jurídica somente se justifica diante de prova robusta de fraude, simulação ou da presença inequívoca dos requisitos previstos no artigo 3º da CLT.[1] 

Entre esses acórdãos, vale destacar o acórdão 9202-011.423, julgado pela 2ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), que analisou a contratação de profissionais de saúde para atuação em hospitais, sob o modelo de contratação feita diretamente com pessoas jurídicas.

No julgado, a 2ª Turma decidiu que, comprovada a presença dos elementos caracterizadores do vínculo empregatício (pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade), a fiscalização pode desconsiderar a pessoa jurídica e enquadrar os profissionais como segurados empregados, mantendo a exigência das contribuições sociais previdenciárias.

A tributação, portanto, foi mantida, porque se entendeu que, de fato, havia relação de emprego entre os profissionais e o hospital, independentemente da existência de contratos com pessoas jurídicas

Sob a perspectiva dos contribuintes, dois argumentos se destacam. Primeiro, a licitude da terceirização e da própria pejotização, reconhecida pelo Superior Tribunal Federal (STF) no Tema 725 da repercussão geral, na ADPF 324 e, mais recentemente, na ADC 66. Invoca-se que a liberdade de organização empresarial – artigo 170 da Constituição – permite escolher o modelo societário mais eficiente, inclusive para profissionais hiper-suficientes, como dispõe o acórdão 2101-002.830.

O segundo argumento trata da inversão do ônus probatório: compete à fiscalização demonstrar a presença de habitualidade, onerosidade, pessoalidade e, principalmente, subordinação. A simples análise contratual é insuficiente, de acordo com o acórdão 2102-003.478.

O fisco, por outro lado, sustenta que a interposição de pessoa jurídica configura abuso, quando evidenciado controle de jornada, exclusividade, benefícios típicos de empregados ou histórico de subordinação estrutural.

Nos autos que resultaram nos acórdãos 2101-002.982 e 2402-012.848, a Receita Federal obteve êxito ao comprovar existência de empresas sem empregados, emissão sequencial de notas fiscais e reembolso de despesas pessoais, o que reforçou a tese de vínculo empregatício. 

A análise dos argumentos, com base, inclusive, em julgamentos da 2ª Turma da CSRF, mostra que o Carf atribui grande importância ao conjunto probatório e que suas decisões são fundamentadas na análise concreta das circunstâncias apresentadas em cada processo.

Em situações em que há autonomia decisória, pluralidade de clientes, ausência de controles e constituição prévia da PJ, prevalecem decisões favoráveis. Entretanto, quando surgem elementos de subordinação direta ou estrutural – como relatórios de produtividade, participação em reuniões internas, reembolsos de custos –, o Carf tende a manter o auto de infração e aplicar a multa qualificada de 150%.

Nesse contexto, nota-se que, nos acórdãos parcialmente favoráveis (como o 2102-003.465), a questão recebe dois tratamentos: mantêm-se as exigências e responsabilidade relativas a diretores ou administradores, enquanto se afasta a imputação sobre profissionais liberais, especialmente médicos, pela inexistência de subordinação.

Diretriz dada ao tema no Judiciário


No âmbito do Judiciário, a diretriz estabelecida pelo STF é ainda mais abrangente. A Corte consolidou entendimento pela licitude de qualquer forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas – independentemente do objeto social – e preservou a responsabilidade subsidiária da tomadora.

Exemplos emblemáticos dessa posição podem ser encontrados nas Reclamações 60.454 (Casas Pernambucanas) e 64.608 (Sigma Credit), nas quais o STF demonstrou firmeza ao cassar decisões administrativas e da Justiça do Trabalho que, sem provas concretas, desconsideraram contratos civis legítimos.

Essa lógica é fortalecida pela ADC 66, que reconhece a constitucionalidade da prestação de serviços intelectuais em caráter personalíssimo por meio de pessoa jurídica e a submete exclusivamente à legislação aplicável às pessoas jurídicas para fins fiscais e previdenciários. Desse modo, uma requalificação exige demonstração inequívoca de que o contrato “civil” foi utilizado para ocultar relação de emprego.

O STF tem reiteradamente decidido que a simples existência de contrato de prestação de serviços por pessoa jurídica, mesmo em atividades-fim, não configura, por si só, fraude ou vínculo empregatício. A exceção ocorre se forem comprovados, de forma concreta, os requisitos do vínculo (subordinação, pessoalidade, habitualidade e onerosidade).

O STF apontou a direção a ser seguida, inclusive em recente decisão proferida pelo ministro Gilmar Mendes, no Recurso Extraordinário com Agravo 1.532.603/PR, ao reconhecer a repercussão geral da matéria constitucional e dar origem ao Tema 1.389.

Nesse tema, será apreciada a "competência e o ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços; e a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade".

Por esse motivo, o relator determinou a suspensão, em todo o país, de todos os processos na Justiça do Trabalho que tratem dessas questões até o julgamento definitivo do Tema 1.389. O objetivo é uniformizar o entendimento e garantir segurança jurídica diante da reiterada recusa da Justiça do Trabalho em aplicar a orientação do STF. Ressalte-se que os casos que tramitam no Carf não foram afetados por essa decisão.

Considerando esse cenário, três conclusões se impõem:

  • Em primeiro lugar, a contratação via pessoa jurídica permanece uma opção legítima, desde que reflita a realidade dos serviços e esteja respaldada por documentação idônea. Isso inclui contratos individualizados, cláusulas que ressaltem a autonomia técnica, inexistência de exclusividade e liberdade na definição de horários e locais de trabalho.
  • Em segundo lugar, a fiscalização vem aprimorando seus métodos de prova. Estruturas economicamente frágeis, criadas às pressas ou desprovidas de colaboradores seguem sob forte escrutínio e tendem a ser desconsideradas.
  • Em terceiro lugar, o diálogo com o Judiciário indica que a discussão se deslocou do plano abstrato — licitude da terceirização — para o plano probatório. Assim, quem pretende descaracterizar a pejotização precisa demonstrar, caso a caso, a existência de fraude ou subordinação.

A era do trabalho híbrido, remoto e de alta especialização desafia modelos tradicionais, e a pejotização se mostra uma ferramenta de inovação. Os julgamentos no Carf vêm exigindo provas objetivas de vínculo para manter autos de infração. Para as empresas, o recado é claro: estrutura societária sólida, observância às regras de compliance tributário e evidências de efetiva autonomia são a melhor defesa contra autuações. Para o fisco, o desafio continua a ser individualizar condutas e afastar presunções genéricas.

Esse tema importante e ainda cheio de nuances leva a pensar que, a não suspensão dos processos em trâmite no Carf, mesmo diante da determinação do STF para uniformizar o entendimento na Justiça do Trabalho, evidencia a existência de uma lacuna de segurança jurídica e tratamento isonômico. Um cenário que mantém os contribuintes envoltos em incertezas e dificulta a consolidação de um ambiente regulatório estável.

Para mais informações, procure um dos especialistas do Machado Meyer.


[1] CLT, artigo 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.