A ocorrência da prescrição[1] – perda de um direito de ação – tem sido um tema amplamente debatido nos tribunais administrativo e judicial nos últimos anos, especialmente no contexto do parágrafo 1º do artigo 1º da Lei 9.873/99.[2]
Esse dispositivo estabelece uma regra de prescrição intercorrente, determinando a perda do direito de ação da Administração Pública nos casos em que o procedimento administrativo ficar paralisado – ou seja, aguardando julgamento ou despacho – há mais de três anos.
No âmbito do direito tributário, a discussão da prescrição intercorrente ganha contornos próprios, já que a prescrição é uma das modalidades de extinção do crédito tributário, de acordo com o artigo 156, inciso V do Código Tributário Nacional (CTN).
No Carf, foram proferidas diversas decisões ao longo dos anos, estabelecendo que a prescrição intercorrente do parágrafo 1º do artigo 1º da Lei 9.873/99 não se aplica aos processos administrativos de cobrança de crédito tributário, mesmo na ausência de movimentação por um período superior a três anos.[3]
Esse entendimento está sedimentado na Súmula Carf 11,[4] aprovada pelo Pleno em 2006 e utilizada para afirmar a inaplicabilidade do instituto da prescrição intercorrente ao processo administrativo fiscal regido pelo Decreto 70.235/72.
A premissa do enunciado é de que, como a prescrição é matéria que o Código Tributário Nacional reservou à lei complementar (ver art. 146, III, b, da Constituição Federal),[5] a disposição da Lei 9.873/99 – uma lei ordinária – não se aplicaria ao regime tributário. O fato de ser um posicionamento sumulado – ou seja, de observância obrigatória para todos os membros dos colegiados do órgão – fez com que diversos casos fossem julgados sem maiores debates.
Já em matéria aduaneira, a aplicabilidade da Súmula Carf 11 foi bastante contestada. O argumento é que a exigência do CTN para que a prescrição seja regulamentada por lei complementar não atinge matéria aduaneira, que obedece a regime jurídico próprio, apesar de seguir as mesmas regras de cobrança do Decreto 70.235/72.
Além disso, a origem da Súmula 11 está relacionada a casos tributários. Os precedentes do antigo Conselho de Contribuintes que levaram ao enunciado abarcam exclusivamente créditos dessa natureza.
Apesar da relevância dos argumentos para afastar a aplicabilidade da Súmula 11 para créditos aduaneiros e de reconhecer a possibilidade de aplicação do instituto da prescrição intercorrente, o Carf vinha, até então, negando a aplicação do artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei 9.873/99 em processos de créditos não tributários (como casos de multas aduaneiras).[6]
Ocorre que, recentemente, em 12 de março, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao apreciar os recursos especiais 2.147.578/SP e 2.147.583/SP, sob o rito de recurso repetitivo (Tema 1.293), deu provimento ao recurso especial interposto pelo contribuinte para reconhecer a incidência de prescrição intercorrente quando o processo administrativo de penalidade aduaneira ficar paralisado por mais de três anos. Tomou-se como base a aplicação da regra de prescrição do artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei 9.873/99.
No entendimento do relator, o ministro Paulo Sérgio Domingues, é a “natureza jurídica da norma de conduta violada, portanto, o critério legal que deve ser observado para dizer se tal ou qual infração à lei deve ou não obediência aos ditames da Lei 9.873/99, e não o procedimento que tenha sido escolhido pelo legislador para se promover a apuração ou constituição definitiva do crédito correspondente à sanção pela infração praticada”.
O voto do ministro ressalva que a aplicação da Lei 9.873/99 dependerá da natureza da infração, independentemente do rito de cobrança. Portanto, a natureza jurídica do crédito correspondente à sanção pela infração à legislação aduaneira é de direito administrativo (isto é, não tributária), no caso em que a norma infringida visa primordialmente ao controle do trânsito internacional de mercadorias ou à regularidade do serviço aduaneiro, ainda que esteja em cobrança de acordo com as regras do Decreto 70.235/72.
A Primeira Seção do STJ concluiu que as multas estabelecidas por infração à legislação aduaneira têm natureza jurídica administrativo-aduaneira (não tributária). Dessa forma, deve ser submetida à prescrição intercorrente prevista no artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei 9.873/99.
O julgamento em questão é relevante porque consolida a jurisprudência de que a prescrição intercorrente pode ser aplicada aos procedimentos regidos pelo Decreto 70.235/72, desde que o litígio trate de matéria não tributária. E por disposição expressa do artigo 99 do Regimento Interno do Carf (Ricarf)[7], a partir do trânsito em julgado, é decisão também vinculante ao Carf.
Vale destacar que, em sessão de julgamento realizada em 15 de abril, a 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), por unanimidade de votos, suspendeu o julgamento de processo administrativo até o trânsito em julgado do Tema 1.293 do STJ, como dispõe o artigo 100, parágrafo único do Ricarf.[8]
O caso em questão tratava de aplicação de multa aduaneira devido à conclusão de um despacho de exportação posterior à saída dos bens para o exterior - matéria que tem natureza aduaneira. Entretanto, com a pendência de julgamentos dos embargos de declaração da Fazenda Nacional contra a decisão relativa ao Tema 1.293 do STJ, a CSRF decidiu aguardar que esses julgamentos fossem encerrados para se posicionar.
Ressalta-se também que, a 1ª Turma da 4ª Câmara da 3ª Seção do Carf, em sessão realizada em 17 de março, proferiu decisão no mesmo sentido em caso que discute a aplicação de penalidade por suposta interposição fraudulenta em operações de importação (processo administrativo 10907.721161/2013-11). Esse foi o primeiro caso julgado após a decisão proferida pelo STJ no Tema 1.293.
O relator, conselheiro Mateus Soares de Oliveira, enfatizou que identificou duas paralisações no decorrer do caso: entre a apresentação da impugnação pelo contribuinte em 2013 e uma petição protocolada pelo contribuinte em 2018, além de uma paralisação adicional entre 2021 e 2025,[9] até que o processo fosse distribuído no Carf.
Nesse sentido, o Carf tem entendido pela aplicação da suspensão temporária dos julgamentos de casos relacionados ao Tema 1.293 do STJ, com base na aplicação do artigo 100 do Ricarf mencionado acima.
Entretanto, o parágrafo único desse dispositivo é expresso ao estabelecer que o sobrestamento mencionado “não se aplica na hipótese em que o julgamento do recurso puder ser concluído independentemente de manifestação quanto ao tema afetado”.
Nesse passo, cabe destacar que os embargos de declaração da Fazenda Nacional apresentados contra a decisão relativa ao Tema 1.293 do STJ apontam uma suposta omissão do acórdão em relação ao marco inicial da prescrição intercorrente (após o término do prazo de 360 dias estabelecido no artigo 24 da Lei 11.457/07).[10] Em termos práticos, isso significa dizer que, se acolhido, o prazo da prescrição intercorrente seria de quatro anos (360 dias + três anos).
Nesse cenário, a depender do caso e em observância expressa do parágrafo único 100 do Ricarf, entendemos que seja possível contestar o sobrestamento do julgamento dos casos pelo Carf, quando a decisão proferida no Tema 1.293 do STJ resultar no reconhecimento da prescrição - ainda que acolhidos os embargos de declaração da Fazenda.
De qualquer forma, é essencial monitorar a continuidade do julgamento no Carf do caso mencionado, para que se possa compreender os reflexos da decisão do STJ no Carf em matéria aduaneira, que são de extrema relevância para os contribuintes.
Nossa equipe tributária segue acompanhando o tema e se coloca à disposição para esclarecer eventuais dúvidas.
[1] Atualização do artigo “Prescrição de créditos aduaneiros” publicado em 28/06/2023
[2] Art. 1o Prescreve em cinco anos a ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.
- 1oIncide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso.
[3] Nesse sentido, Acórdão 3002-003.082 (sessão de 29/08/2024), 3202-001.901 (sessão de 24/07/2024), 3402-011.594 (sessão de 24/04/2024), 3003-002.413 (sessão de 19/07/2023), 3003-002.161 (sessão de 08/12/2022), 3402-008.550 (sessão de 27/08/2021).
[4] Não se aplica a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal.
[5] Art. 146. Cabe à lei complementar:
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;
[6] Conforme casos mencionados acima, Acórdão 3002-003.082 (sessão de 29/08/2024), 3202-001.901 (sessão de 24/07/2024), 3402-011.594 (sessão de 24/04q2024), 3003-002.413 (sessão de 19/07/2023), 3003-002.161 (sessão de 08q12/2022), 3402-008.550 (sessão de 27/08/2021).
[7] Art. 99. As decisões de mérito transitadas em julgado, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, ou pelo Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional, na sistemática da repercussão geral ou dos recursos repetitivos, deverão ser reproduzidas pelos conselheiros no julgamento dos recursos no âmbito do CARF.
[8] Art. 100. A decisão pela afetação de tema submetido a julgamento segundo a sistemática da repercussão geral ou dos recursos repetitivos não permite o sobrestamento de julgamento de processo administrativo fiscal no âmbito do CARF, contudo o sobrestamento do julgamento será obrigatório nos casos em que houver acórdão de mérito ainda não transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal Federal e que declare a norma inconstitucional ou, no caso de matéria exclusivamente infraconstitucional, proferido pelo Superior Tribunal de Justiça e que declare ilegalidade da norma.
Parágrafo único. O sobrestamento do julgamento previsto no caput não se aplica na hipótese em que o julgamento do recurso puder ser concluído independentemente de manifestação quanto ao tema afetado.
[9] O recurso voluntário do contribuinte deu entrada no Carf em 11/06/2021,foi distribuído à 1ª Turma da 4ª Câmara da 3ª Seção em 21/01/2025 e remetido para relatoria em 23/01/2025.
[10] Art. 24. É obrigatório que seja proferida decisão administrativa no prazo máximo de 360 (trezentos e sessenta dias) a contar do protocolo de petições, defesas ou recursos administrativos do contribuinte.