O artigo da legislação trabalhista que transfere aos entes públicos a responsabilidade por indenizações quando o trabalho tiver que ser paralisado não poderia ser aplicado às demissões realizadas por empresas durante a pandemia do coronavírus.

Especialmente não deveria ser invocado para evitar o pagamento de verbas rescisórias, dizem especialistas ouvidos pela Folha.

O funcionário que não receber a totalidade de suas verbas salariais, como 13º e férias vencidas, e os valores indenizatórios, como aviso prévio e a multa do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), tem o direito de ir à Justiça do Trabalho cobrar o pagamento.

O artigo 486 da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) foi utilizado por empresas como a rede de churrascarias Fogo de Chão, a pizzaria carioca Parmê, a construtora catarinense Elevação e a Viação Marte, da Bahia, para evitar o pagamento do valor total da rescisão a funcionários demitidos.

O tal artigo, conhecido no meio jurídico como a teoria do fato do príncipe, diz que "no caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável".

Para a advogada Caroline Marchi, sócia da área trabalhista do Machado Meyer, mesmo que a interpretação desse artigo transferisse a responsabilidade pelo pagamento da indenização aos governos, caberia às empresas fazer essa cobrança.

A rescisão paga aos funcionários ainda precisaria ser feita de maneira integral.

Essa utilização do artigo 486 da CLT já foi parar na Justiça do Trabalho. Em pelo menos três situações, a aplicação foi barrada pelo judiciário.

Na Bahia, o Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Intermunicipais de Transportes Rodoviários buscou a Justiça depois que a Marte Transportes demitiu dez funcionários e informou que a multa de 40% do Fundo de Garantia não seria paga.

Esses funcionários estavam com o contrato suspenso com base na autorização dada pela Medida Provisória 936. A juíza Isabella Borges de Araújo determinou, de maneira provisória, a reintegração dos funcionários. A empresa recorreu.

Em outro caso, a juíza do trabalho Angela Maria Konrath considerou oportunismo a decisão da Construtora Elenco, de Santa Catarina, que pagou somente 50% das rescisões de seus funcionários.

Segundo a decisão, quando dispensou 40 funcionários, o decreto estadual que definiu medidas de enfrentamento ao coronavírus tinha apenas nove dias.

A ação foi iniciada pelo sindicatos dos trabalhadores da indústria da construção de Joaçaba e terminou na semana passada, após acordo.

O professor de direito do trabalho da FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas) Ricardo Calcini diz ainda que a aplicação do artigo 486 se restringe à indenização da multa do FGTS e não ao pagamento das demais verbas contratuais.

"O fato do príncipe não pode ser invocado quando a empresa resolve despedir alguns empregados em virtude da dificuldade financeira provocada pela paralisação. Há que gerar situação de encerramento irreversível da atividade econômica. Logo, deve ser analisado, caso a caso, se situação do coronavírus impediu efetivamente a continuidade da empresa", afirma Calcini.

O Ministério Público do Trabalho em São Paulo prepara uma manifestação oficial sobre o assunto, mas informou que "demitir empregados sem o pagamento das verbas rescisórias é ilegal, ainda que, de alguma forma ou interpretação, se entenda aplicável o art. 486 da CLT."

No fim de março, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em guerra com prefeitos e governadores que determinaram medidas de distanciamento social, afirmou que a legislação trabalhista previa a possibilidade de se cobrar a indenização das autoridades.

"Tem um artigo na CLT que diz que todo empresário, comerciante, etc, que for obrigado a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo, os encargos trabalhistas, quem paga é o governador e o prefeito, tá ok?", afirmou Bolsonaro, na época.

Para o advogado Maurício Guidi, do Pinheiro Neto, as demissões em meio à pandemia do novo coronavírus poderiam ser consideradas em consequência de atos administrativos tomados por gestores públicos. Ou seja, a determinação de que os estabelecimentos comerciais fiquem fechados foi o que resultou na necessidade de reduzir o quadro de funcionários ou mesmo fechar a empresa.

Há, porém, outro fator que precisaria ser levado em conta -e que as empresas que aplicam esse entendimento estão ignorando. "Você tem aqui uma externalidade, uma doença nova, sem nenhum tratamento comprovado e sem uma vacina. A Constituição prevê o direito à saúde. Então, a quarentena não é um capricho das esferas de poder", afirma.

Para o advogado, há ainda outros pontos que tornariam a utilização do artigo questionável do ponto de vista legal. Bares e restaurantes que fazem entregas e retiradas, transporte e construção civil estão entre os segmentos considerados essenciais e cujo funcionamento ainda é permitido.

No caso do setor de alimentação, com exceção dos locais em que a quarentena precisou ser ampliada -os chamados lockdowns-, o funcionamento ainda é permitido para entregas e compras para viagem (os take away). O que não é permitido é o atendimento ao público.

No Rio de Janeiro, uma ação apresentada pelo Ministério Público do Trabalho pedia, entre outras coisas, a aplicação desse artigo, chamado no meio jurídico de "Teoria do Fato do Príncipe", para responsabilizar os três entes públicos -União, governo e prefeitura- por indenizações trabalhistas a todos aqueles que perdessem o emprego.

O juiz do trabalho Helio Ricardo Silva Monjardim da Fonseca negou o pedido e afirmou que não era possível a responsabilização das autoridades públicas uma vez que o Brasil enfrentava uma força maior.

"Ou seja, uma situação sem parâmetros, sem paradigma, atípica, desproporcional, absurdamente imprevisível, além do controle humano, no que se pode lembrar de uma expressão inglesa, sendo um act of God, possível, é verdade, de levar ao fechamento de inúmeras empresas/estabelecimentos, a começar pelos pequenos e médios, justamente aqueles que absorvem a maior colocação da mão de obra relativa aos contrato de empregos formais", afirmou o magistrado. O MPT do Rio recorreu.

A rede Fogo de Chão confirmou em nota a utilização do artigo 486, mas não explicou que interpretação deu à previsão legal. A pizzaria Parmê disse, em nota, que precisou desligar um terço dos funcionários, e que isso foi feito de forma legal.


Jornalista: BRIGATTI, Fernanda

(Folha de S. Paulo - 21.05.2020, p. A13)